Torres Vedras

Venerando Aspra de Matos

28.04.2023

(Re)conhecido investigador da História contemporânea torriense, Venerando António Aspra de Matos é um dos maiores entendidos no que respeita à História do Carnaval de Torres Vedras. Numa altura em que se comemora o Centenário deste evento, a [Torres Vedras] esteve à conversa com este docente de História recentemente reformado, na qual, partindo da referida efeméride, se abordou também outros assuntos, como os trabalhos publicados pelo entrevistado, o seu trajeto pessoal e profissional e a sua ligação ao cineclubismo e ao universo da banda desenhada.

 

Começava por questioná-lo sobre a importância que atribui às comemorações do Centenário do Carnaval de Torres Vedras, sendo que é membro da subcomissão científica das mesmas.

Sabemos que Torres Vedras está muito ligada ao Carnaval, embora este evento não seja o principal elemento identificador da sua História. De qualquer forma, penso que, ultimamente, é o elemento unificador, quase toda a gente que vive em Torres Vedras tem uma ligação ao Carnaval. Hoje em dia é uma imagem da identidade torriense.

 

Recentemente houve uma polémica relacionada com o facto de 1923 ser ou não ser o ano de início do Carnaval de Torres Vedras. Qual é a sua opinião sobre esse assunto?

Eu penso que essa polémica é de alguma forma compreensível. Mas o facto é que temos de definir critérios para a História do evento, e o critério que foi definido para marcar o seu início foi o episódio da criação da chamada dinastia do Carnaval, com o primeiro Rei do Carnaval, que surge em 1923. Isso não quer dizer que o Carnaval não fosse vivido em Torres Vedras antes desse ano.

Sabemos, por exemplo, que no tempo de D. Sebastião, houve uma queixa relacionada com uma brincadeira típica do período de Carnaval, o costume de “correr o galo”, que terá causado uma bulha entre miúdos. Posteriormente, já no século XIX, houve uma outra queixa, relacionada com um teatro que ia ser apresentado na altura do Carnaval numa coletividade, o qual supostamente iria satirizar a igreja, e que provocou um tumulto popular. Esse episódio mostra que já se comemorava em Torres Vedras o Carnaval nas coletividades, nomeadamente com récitas, que eram peças humorísticas que se faziam.

E a partir de 1895, com o aparecimento da imprensa em Torres Vedras, temos imensas notícias sobre o Carnaval. Convém dizer, no entanto, que essas notícias eram quase sempre a desacreditar o Carnaval de rua, divulgando-se, fundamentalmente, as festas nas coletividades.

Convém também dizer que o Carnaval em Torres Vedras foi utilizado pelos republicanos locais para a sua afirmação.

De notar que o Carnaval de rua em Torres Vedras, como o conhecemos, com as dinastias reais, tem a sua origem nas coletividades. Em 1923, quando se dá o aparecimento da figura do Rei do Carnaval de Torres Vedras, este, com o seu séquito, faz um périplo por associações locais. Já a figura da Rainha só aparece em 1924. Mas a figura do Rei, que serve de base para as comemorações do Centenário do Carnaval aqui, também não é uma figura original de Torres Vedras, até porque na década de 1920 surge também nos desfiles de Carnaval de Lisboa a figura do Rei e da Rainha do Carnaval, sendo que no vizinho concelho do Cadaval há já em 1909 uma referência a um Rei do Carnaval. De referir que o Carnaval de Torres vai, pelo menos inicialmente, organizar-se muito segundo o figurino do Carnaval de Lisboa dos anos 20.

 

Como vê a posterior evolução do evento, após o aparecimento das figuras do Rei e da Rainha?

Quando se dá o golpe militar de 1926 há um certo período em que o Carnaval não se realiza em Torres Vedras, regressando depois em 1930. Em 1931 dá-se a primeira batalha de flores e, nessa década de 30, o Carnaval torriense sai de alguma forma de Torres Vedras e vai ser divulgado em Lisboa. Depois temos o período da II Guerra Mundial. Em 1941 o Carnaval é proibido em Torres Vedras e só no final da guerra se volta a realizar. Há, na década de 50, avanços e recuos na organização do Carnaval em Torres Vedras, e é preciso esperar pela década de 60, quando a Associação de Educação Física toma em mão a organização do Carnaval em benefício da colónia balnear infantil de Santa Cruz, para que o Carnaval de Torres comece a ser novamente conhecido. Depois, há outro aspeto que marca o Carnaval de Torres Vedras, já na época democrática, que tem a ver com o facto de ter resistido à “abrasileiração”. É então que o Carnaval de Torres Vedras entra na sua terceira fase, que começa em 1985, quando a Câmara Municipal toma em mão a sua organização. É nessa sequência que é criada a Promotorres, que o programa é alargado para além dos dois dias, e que é criado, em 1988, o Carnaval temático.

O Carnaval de Torres Vedras fez, no fundo, a síntese entre vários aspetos do Carnaval tradicional, do Carnaval urbano, do Carnaval da noite, faz a síntese de muitas experiências que se foram acumulando ao longo do tempo, que se foram renovando, e hoje tem a importância que tem.

 

Editou uma obra sobre a história do Carnaval de Torres Vedras, mas tem também outras investigações publicadas relacionadas com a História local. Poderia fazer uma breve abordagem às mesmas?

Estou ligado à História, licenciei-me nessa área, e nas investigações que fui fazendo interessei-me sempre por temas relacionados com a História local. O meu primeiro interesse pela História local esteve ligado ao cinema, a primeira investigação histórica que fiz foi sobre o Cineclube de Torres Vedras, que publiquei em fascículos no jornal Oeste Democrático. Depois, fui começando a publicar trabalhos no Badaladas, no Área, no Em FrenteOeste, no Zona Oeste e noutras edições, sobre a História local. Entretanto colaborei numa monografia coletiva sobre a História de Torres Vedras, que tentou renovar a interpretação sobre a nossa História local, apresentando uma perspetiva da História diferente das anteriores. Comecei também a participar no Turres Veteras, com investigação original. E depois, surgiu o livro sobre o Carnaval. Fiz também um texto sobre a História da Feira de S. Pedro, e, posteriormente, um estudo sobre os republicanos em Torres Vedras, que foi a minha tese de mestrado. Mais tarde, elaborei também um estudo sobre o impacto do caminho de ferro em Torres Vedras, e, mais recentemente, fiz um estudo biográfico sobre o meu pai, que foi um oposicionista do Estado Novo aqui em Torres Vedras, até na sequência de uma sugestão do professor Pacheco Pereira, com quem tenho colaborado no âmbito do Arquivo Ephemera. Atualmente, estou a colaborar com o Badaladas com uma secção mensal que é o Vedrografias, que está aliada a um blogue meu que tem o mesmo nome, dedicado à História local.




 

Para além de investigador na área da História, foi também docente de História durante várias décadas, quase sempre do ensino secundário. Foi para si gratificante essa experiência?

Sim, foi sempre uma experiência bastante gratificante, até porque obrigou a manter-me sempre atual, fui lidando com gerações muito diferentes. O que eu gostava mais no ensino era, para além de dar História, do contacto com os alunos, o fazê-los descobrir as coisas. Atualmente estou ainda a dar aulas, numa instituição de ensino superior privada, na área da formação profissional.

 

Poderia fazer uma breve resenha do seu percurso pessoal e profissional?

Nasci aqui em Torres e cresci na praceta Dr. Afonso Vilela. A minha escola primária foi aquela que fica junto à Rua Princesa Maria Benedita. Depois frequentei o liceu, que funcionava no edifício que é agora o da Câmara Municipal. Posteriormente, fiz o curso de História na Universidade de Letras. No primeiro ano do curso morei em Lisboa, tinha lá um part time, mas a partir do segundo ano comecei a ir e vir de comboio, e, a partir do terceiro, comecei pontualmente a dar aulas. Fui dando aulas na Freiria, na Madeira Torres, na Henriques Nogueira e fui “inaugurar” a Padre Francisco Soares. Dei também aulas em Vila Franca de Xira durante dois anos e houve um ano em que no concurso me enganei no código da escola e fui parar a Albufeira. Voltei para Torres, fixei-me na Henriques Nogueira, onde dei aulas até me reformar. Entretanto fiz também o mestrado, em História Social Contemporânea, no ISCTE. Também dei ações de formação, mas o que fiz profissionalmente foi, fundamentalmente, dar aulas no ensino público.

 



Paralelamente, também desenvolveu aqui em Torres Vedras um trabalho relacionado com o cineclubismo e a banda desenhada… 

Sim, desde muito novo que eu fazia as minhas revistas de banda desenhada, imitando aquilo que havia na altura, à semelhança de amigos meus. Em 1973 reunimo-nos e fizemos um fanzine de banda desenhada chamado Impulso. E o que é que é isto dos fanzines? Eram publicações não oficiais, feitas de forma muito rudimentar, que não tinham uma periodicidade muito certa. Sem saber muito bem disso, estivemos na vanguarda dos fanzines em Portugal. Já depois do 25 de Abril chegámos a fazer uma exposição de banda desenhada aqui em Torres, ligado a um encontro de cineclubes. Depois, em 1986, cheguei a fazer um outro fanzine, também aqui em Torres Vedras, com o João Sarzedas.

Ao Cineclube também comecei a ligar-me em 1973, quando deixou de funcionar sob o controle da Câmara e um grupo ligado aos Escuteiros tomou conta daquilo. Estive lá até aos anos 80, íamos às aldeias passar filmes, fazíamos duas sessões mensais no Teatro-Cine, com filmes de qualidade, com debates. Estive também ligado ao festival de cinema da Figueira da Foz, fiz lá muitas reportagens pelo Badaladas, e conheci muita gente ligada ao cinema.

Entretanto estive também ligado a outras associações, à associação de defesa do património, por exemplo, também ao jornal Área, um jornal vanguardista, que surgiu no final dos anos 70, que deu origem à Cooperativa de Comunicação e Cultura, que foi fundada para dar cobertura legal a esse jornal. Nos anos 80 colaborei também nas rádios locais, estive ligado à rádio Estremadura, depois à Rádio Oeste. Mais recentemente liguei-me à área dos blogues, neste momento tenho quatro, embora uns mais ativos do que outros: um sobre Artes, que é o “A Forma e a Luz”; outro de opinião geral, que é o “Pedras Rolantes”; um outro, ligado à banda desenhada, que é o BêDêZine; e o já referido Vedrografias.

 

Data: 10 de março

Local: Biblioteca da Escola Secundária Henriques Nogueira

Publicado: 28.04.2023 - 16:29 horas
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