Torres Vedras

Nuno Rodrigues

15.04.2020

Em plena pandemia causada pela doença COVID-19, a revista municipal [Torres Vedras] conversou com o Delegado de Saúde do ACES (Agrupamento de Centros de Saúde) Oeste Sul, Dr. Nuno Rodrigues, para perceber de que forma se desenvolveu a resposta de saúde no concelho de Torres Vedras, que medidas individuais devem ser tomadas e de que forma podemos olhar para o futuro.


Começo por lhe perguntar se recorda o momento em que "descobriu" que queria dedicar a sua vida profissional ao mundo da saúde? 

Não foi uma coisa muito precoce, foi já no ensino secundário. Os meus interesses sempre foram mais ligados à parte da matemática e do desporto. Só no secundário é que decidi que faria sentido para mim ser médico e descobri melhor o que era a biologia humana, a química e o relacionamento interpessoal. E portanto decidi que faria sentido vir a ser médico e dediquei-me a isso nos estudos para poder ter nota suficiente para entrar em medicina.


A partir daí, qual foi o seu percurso?

Depois entrei em medicina na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, concluí a licenciatura de seis anos. O primeiro ano de formação geral fi-lo em Évora, onde passei pelas várias especialidades gerais que são característica do ano comum […] E foi nessa altura que decidi que uma das minhas opções como especialidade seria a saúde pública. Portanto, no final desse ano escolhi a especialidade de saúde pública e entrei então, no ano seguinte, para saúde pública na cidade do Porto. Fiz só um ano na cidade do Porto e, depois, por motivos pessoais, vim para Queluz e foi no ACES Sintra que terminei a minha formação em saúde pública.


Há quanto tempo assume a função de Delegado de Saúde do ACES Oeste Sul?

Tendo terminado o meu internato médico de saúde pública, em Sintra, em 2013, iniciei funções aqui em Torres Vedras a 2 de janeiro de 2014.

"(...) as funções da Autoridade de Saúde implicam uma representação do Estado." 
Como foi assumir esse desafio? Em que é que se diferenciava daquilo que eram as suas experiências anteriores?

O acréscimo de responsabilidade do internato para a função de Autoridade de Saúde é tremendo. Embora nós estejamos aptos, por isso é que concluímos a especialidade, a trabalhar em qualquer ponto do país, as funções da Autoridade de Saúde implicam uma representação do Estado. Implicam tomar decisões em nome do Estado em defesa da saúde pública. E, portanto, a responsabilidade é muito maior como Autoridade de Saúde do que enquanto interno, em que estou a trabalhar mas ainda estou numa fase de formação. É uma diferença muito grande de funções e de responsabilidade.


Estamos em plena pandemia causada pela doença COVID-19. Qual é o papel de um Delegado de Saúde perante uma situação destas?

O Delegado de Saúde tem uma função preponderante, eu diria, em três funções. A primeira é de articulação com os restantes atores da sociedade: com conhecimento técnico da saúde pública, ajudar as outras instituições e os outros representantes a prepararem-se melhor para esta situação. A segunda função - e é a que tem ocupado mais tempo nesta fase já intermédia - é de vigilância epidemiológica: descobrir os casos, fazer o rastreio de contactos, quebrar cadeias de transmissão. E o terceiro ponto importante é a comunicação de risco à população, ou seja, dizer à população o que deve ou não deve fazer.


"Este é um vírus novo e, sendo novo, a grande característica é que não há ninguém que esteja imune previamente."

Especificando neste coronavírus, o que tem este vírus de diferente em relação aos outros?

Este é um vírus novo e, sendo novo, a grande característica é que não há ninguém que esteja imune previamente. Portanto todos os seres humanos são potenciais hospedeiros deste vírus. Sendo potenciais hospedeiros e não tendo capacidade de defesa, obviamente que o vírus tem uma capacidade de replicação maior dentro da nossa sociedade. Essa é a principal característica que é diferente dos vírus que estão a circular. E circulam muitos durante todo o ano.


Que tipo de desafios é que esta situação levantou às Autoridades de Saúde?

As características do vírus são que ele se transmite por gotículas entre pessoas ou por superfícies. Estas são as duas principais formas de transmissão. E os sintomas que o mesmo provoca são similares a dezenas de outros vírus. Portanto é muito difícil para nós, médicos, diferenciar entre uma pessoa infetada por um coronavírus ou uma pessoa infetada pelo vírus da gripe […]. Por outro lado, o que este vírus tem provocado é uma grande sobrecarga dos sistemas de saúde. Essa sobrecarga leva a que haja um conjunto muito grande de indivíduos com condições muito graves, o que implica entrar em unidades de cuidados intensivos, que não estão dimensionadas para tanta gente em tão curto espaço de tempo.


"Na preparação do Carnaval de Torres Vedras já foram tomadas medidas, foram feitos alertas (...)"


Pensando agora na realidade do concelho de Torres Vedras, recorda-se de quais foram as primeiras medidas que tomou relativamente a esta situação? E em que momento? 

[…] Na preparação do Carnaval de Torres Vedras já foram tomadas medidas, foram feitos alertas do que deveria ou não ser feito dentro da preparação do que é o maior evento de massas da Região Oeste. Desde essa altura, houve uma consciencialização dentro da Comissão Municipal de Proteção Civil e dos vários agentes da importância e do perigo deste vírus. Essa foi a fase inicial, logo em fevereiro.

Depois passamos para uma fase em que tivemos de fazer múltiplas reuniões com vários setores da sociedade, com escolas, lares, farmácias, funerárias, numa ótica de sensibilização e de preparação para o que iria vir.


"Desde os lares às farmácias, têm sido de uma abnegação, de um cumprimento e de uma tentativa de melhorar sempre os procedimentos."

Tendo em conta o que separa esse início dos dias de hoje, como olha para aquela que tem sido a resposta do Concelho?


Pessoalmente, estou muito satisfeito com a resposta de todos os atores e instituições do Concelho. Desde os lares às farmácias, têm sido de uma abnegação, de um cumprimento e de uma tentativa de melhorar sempre os procedimentos. Mesmo as próprias empresas de Torres Vedras tomaram as medidas necessárias e estão ainda a melhorá-las. Há pequenas coisas das quais não nos apercebemos logo e que carecem de melhoria. Isso é um processo normal, natural, e as instituições têm ido sempre no mesmo sentido. Outra coisa que também me agradou bastante foi que em termos de cooperação a nível da saúde, tanto os hospitais privados como o hospital público e o Centro de Saúde reuniram desde a primeira hora e têm concertado esforços no sentido de poder, dentro das limitações que temos, dar a melhor resposta possível.


"Eu acho que, regra geral, os torrienses têm cumprido."

Como é que avalia o “desempenho” da sociedade torriense no que toca ao cumprimento do distanciamento social e das recomendações das Autoridades de Saúde?


Eu acho que, regra geral, os torrienses têm cumprido. E isso verifica-se também um bocadinho na parte epidemiológica, que é a parte que eu vejo mais de perto, e de tentar quebrar o mais rápido possível cadeias de transmissão dentro do nosso Concelho. […] Acho que ainda é possível fazer melhor, acho que as pessoas podem restringir ainda mais os seus movimentos, mas regra geral estou satisfeito porque de facto sinto que as pessoas estão a cumprir.


Olhando para a situação do país, como avalia as medidas de prevenção que têm sido tomadas? Há de facto algum tipo de impacto naquilo que é o “achatar” da curva epidemiológica? 

Claramente que sim. O estudo da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública que monitoriza diariamente essa relação, que é o [indicador] R – o R significa o número de pessoas que são infetadas por uma pessoa doente –, tem vindo consistentemente a diminuir. E isso já são efeitos das medidas de distanciamento social, do estado de emergência, que têm vindo a ser impostas. […] Claramente já estamos numa fase de diminuição da transmissão, mas este R, que se traduz no número de pessoas que são infetadas, ainda está acima de 1. Ou seja, uma pessoa ainda infeta mais do que uma. Só quando esse R baixar de 1 é que podemos começar a dizer que a epidemia não está em expansão, que já está a ser verdadeiramente controlada. Embora já esteja a diminuir o ritmo de crescimento.


O concelho conta com duas Áreas Dedicadas COVID-19 (ADC), uma no Centro de Saúde de Torres Vedras e outra no Serviço de Urgências do Hospital. O que nos pode dizer sobre o seu funcionamento?

É prioritário separar pessoas com sintomas respiratórios e com febre e esse atendimento ser feito por equipas dedicadas, com equipamentos de proteção individual adequados à segurança dos profissionais. Portanto entendeu-se separar essas áreas, tanto no Hospital como no Centro de Saúde. Temos áreas dedicadas ao atendimento do doente com patologia respiratória e febre e são circuitos diferentes das outras patologias que não têm nem febre nem sintomas respiratórios.

O ADC da Comunidade funciona no Centro de Saúde de Torres Vedras, das 8h00 às 20h00, de forma consecutiva. Há dois turnos de equipas de profissionais […] que estão em permanência, sete dias por semana, para tratar doentes com estes sintomas. No Hospital, funciona 24 horas e os circuitos é a mesma questão, estão diferenciados e dão resposta à população 24 horas por dia. A única diferença é que no Centro de Saúde não há possibilidade de realização de testes, sendo que no Hospital, os doentes que tiverem critérios clínicos para tal, os meus colegas recomendam o teste e é feito lá. No Centro de Saúde, os doentes que forem identificados têm de, por marcação, fazer no nosso centro de testes, no Centro de Educação Ambiental.


"As pessoas com outro tipo de problemas não devem ter receio de ir ao Hospital com situações graves, porque as áreas estão diferenciadas." 
Isto porque importa sublinhar que o Serviço Nacional de Saúde continua a dar resposta a todas as outras patologias que não são COVID-19.

Isso é verdade e essas também são prioritárias. Em termos das urgências, verificamos que de facto diminuiu muito o número de utentes “verdes” e “azuis”, ou seja, os menos urgentes diminuíram consideravelmente. Mas o que nos preocupa também é que os doentes “amarelos” e “laranjas”, ou seja, doentes já com alguma gravidade, também diminuíram. Ora estes doentes, pelas características das pessoas que podem dar origem aos problemas, não desapareceram. […] As pessoas com outro tipo de problemas não devem ter receio de ir ao Hospital com situações graves, porque as áreas estão diferenciadas. […] Pessoas que têm outro tipo de sintomas, dor no peito acentuada, perda de força num membro, etc, devem rapidamente ir ao Hospital na mesma.


O mesmo se aplica, noutro plano, ao Programa Nacional de Vacinação.

Exatamente. Há determinadas áreas que são fulcrais para o nosso país, para manter os indicadores ótimos que temos em termos de saúde infantil e de saúde materna. Portanto esses dois programas, tanto o de saúde materna como o de infantil, permanecem iguais. Ou seja, há na mesma consultas presenciais no Centro de Saúde para vacinação e, se for necessário, a grávida também poderá ir ao seu médico de família. Se não for necessário, o meu colega também poderá contactar com a grávida por telefone ou por outros meios.


"Quanto mais cedo identificarmos o caso, mais cedo vamos quebrar a cadeia de transmissão e menos pessoas vão ser infetadas."

Voltando à resposta do Concelho à pandemia, qual é a importância de contarmos com um centro de testes à COVID-19?

Ainda estamos, claramente, numa fase em que precisamos de testar mais. Portanto esta é mais uma ajuda a testar mais e a diagnosticar mais casos. Porque é que queremos diagnosticar mais casos? Precisamente porque identificando os casos da forma mais precoce possível podemos, então, quebrar as tais cadeias de transmissão. Quanto mais cedo identificarmos o caso, mais cedo vamos quebrar a cadeia de transmissão e menos pessoas vão ser infetadas. Nesta fase é importante testar e é importante rastrear os contactos. Estes são os dois pontos absolutamente necessários nesta fase intermédia.


Olhando para o caminho que falta percorrer até ao final desta pandemia, dentro daquilo que é possível avaliar, qual é que considera que será o maior desafio?

Há várias janelas temporais. O desafio nas próximas duas/três semanas é continuarmos todos, como sociedade, a fazer este esforço de nos mantermos em casa, evitar sair à rua o máximo possível. Depois, a médio prazo, é conseguirmos evitar que os nossos cuidados intensivos sejam demasiadamente sobrecarregados. Isso também é um desafio. E a longo prazo será o desafio de uma eventual vacina, que também está a ser investigada. […]


"Nas próximas duas/três semanas temos mesmo de manter o isolamento social, até conseguirmos de facto achatar a curva (...)"
Pensando agora nos profissionais de saúde, o que é que gostaria de lhes transmitir?

Gostava de lhes dizer que estou muito orgulhoso da resposta. Sei que são profissionais dedicados, sei que são profissionais que estão a dar muitas das horas da vida deles, muitas das horas de família deles. Muitos profissionais não estão a ir a casa, não estão a ver a família, para se poderem dedicar em pleno, salvaguardando a segurança dos seus familiares. Esta também é uma fase dura para os profissionais de saúde. Portanto queria transmitir-lhes uma mensagem de motivação e de alento, porque ainda estamos a meio, e queria que eles estivessem motivados. Da minha parte terão todo o apoio que for necessário.


Antes de terminar perguntava-lhe que mensagem gostaria de transmitir à população do concelho de Torres Vedras?

Gostaria de transmitir uma mensagem de confiança, que cumpram, em termos individuais, as recomendações. Como população, ajudem. Se virem que alguém pode ter um melhor comportamento, avisem. […] Nas próximas duas/três semanas temos mesmo de manter o isolamento social, até conseguirmos de facto achatar a curva, baixar o tal R abaixo de 1 e, aí, podermos pensar em abrandar as medidas. Porque obviamente isto tem um grande impacto social e económico para todas as famílias. Há muitas pessoas com menos rendimentos, há muitas pessoas sem emprego. Quanto mais rápido nós conseguirmos, enquanto sociedade, controlar isto, mais rapidamente poderemos voltar à vida relativamente normal. Que eu acho que também só existirá quando houver vacina.


Onde: Câmara Municipal de Torres Vedras

Quando: 4 de abril de 2020

Rita Santos
Última atualização: 18.04.2020 - 19:19 horas
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