Torres Vedras

Leonor Brilha

13.08.2020

Fotografia em que se vêm os retoques finais na montagem da exposição “Vanitas”, em 2011.

Leonor Brilha é artista e professora de artes visuais. Nasceu em Torres Vedras em 1982, mas atualmente vive e trabalha em Lisboa. “Gosta de passear no Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian e, sempre que pode, passa uns dias na Praia de Santa Cruz, junto da família e das suas amigas de infância” conta a artista, que hoje dá a conhecer After the Gold Master Pieces, obra que integra o acervo da Paços - Galeria Municipal de Torres Vedras.

 

Quando pensam em Leonor Brilha, muitas pessoas pensam em pintura. No entanto, o seu trabalho é muito mais abrangente: desde a pintura, à fotografia, à escultura, ao design, entre outros. Como é que todas estas áreas têm entrado no seu percurso artístico?

As artes visuais, na sua fruição e envolvência prática, apresentam-se como um alimento indispensável para a mente e espírito de espectadores e artistas. Desde pequena que as artes visuais me cativaram, comecei pelo desenho aos dois anos e, desde aí, não parei. A minha mãe, sendo bióloga e professora, procurou artistas e professores de arte que lhe foram indicando lugares, materiais e técnicas para eu experimentar. Recordo-me de ser muito pequena e ficar a brincar com barro no atelier de cerâmica de Francisco Lemos. Há exposições que ficam na nossa memória para sempre, no meu caso tinha nove anos, quando em 1991 visitei a exposição Pinturas para o céu - nada mais curioso, descobrir que a exposição que “me fez voar” apresentou papagaios de papel japoneses pintados na Fundação Calouste Gulbenkian.

Seguiu-se a licenciatura em Pintura - Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes de Lisboa e o retorno à minha terra com a criação do Espaço Ponto e Vírgula. Este último enumerou vários espaços num só: galeria de arte, loja de produtos portugueses, escola de artes visuais, o meu atelier e a minha casa. Foi nesses anos que vivi a pintura desde o momento em que acordava até à hora de me deitar, só pensava em pintar, atormentada com o tema da morte e vivia embrenhada nas tintas! Em torno da matéria central – a pintura – surgiam esculturas, instalações, desenhos e séries de fotografias. Mas em 2008, a crise que se viveu no país fez-me mudar de rumo. Voltei a Lisboa, à procura de outra “Leo Shine” - com uma vida mais estável, menos angustiante. A arte mais sublime está ligada a um sofrimento que nos impele a transpor para a pintura o que de mais duro tem a vida, por isso quando numa exposição passamos por essas obras, paramos envolvidos na sua força e estremecemos.

Voltei à Faculdade de Belas Artes e desta vez ao Design de Comunicação, conheci o Aurelindo Ceia, que me transmitiu uma paz interior que não conhecia, em que um conhecimento vasto mescla-se com um enorme sentido de compaixão e de gratidão. Comecei a ilustrar lendas e histórias, e a ultrapassar medos, um a seguir ao outro, inclusive o das alturas ao fazer arte urbana! Tornei-me uma pessoa mais leve, mais equilibrada e positiva, talvez... […]

A profissão de docente na Escola Artística António Arroio permitiu-me obter alguma estabilidade financeira agregada a um tempo extra para me poder embrenhar em projetos artísticos pessoais, que me têm vindo a surpreender pela diversidade e novidade nos desafios.

Quando deixei as artes plásticas (pintura, escultura, instalação, fotografia) que desenvolvia em atelier até perto de 2013, para estudar Design de Comunicação (ilustração, animação, caligrafia e lettering) envolvendo o digital; a paleta de possibilidades tornou-se tão ampla, que já não me vejo a fazer a mesma coisa durante muito tempo, como antes pensava que ia ser pintora para toda a vida! Vejo-me mais como uma artista “saltimbanco” que salta de projeto em projeto, deixando o seu registo em tantas áreas quanto as que me convidarem a experimentar.

Neste momento, por exemplo, tenho um filho pequeno e ando a escrever histórias infantis para mais tarde ilustrar ou animar. Quando me perguntam se voltarei a pintar como antes, respondo que quando for mais velha, carregando então um passado (envolvendo alguma ou muita dor) e provavelmente o medo da morte, de erto voltarei às telas e à embriaguez dos óleos... Por enquanto não sinto essa sede de me isolar e de pintar.

 

Quais são as suas principais referências?

Poderia enumerar muitos autores, mas não quero retirar nem reduzir a atenção ao mestre ímpar: Francis Bacon. Como acontece no filme Batman, de Tim Burton (de 1989), Jack Nicholson (que na altura encarna a figura do Joker) sugere ao realizador a ideia de que quando Joker e os maus da fita destroem várias obras de arte num Museu de Gotham City, o Joker os impeça que se estrague o quadro Figure with Meat de Francis Bacon (uma interpretação do Retrato do Papa Inocêncio X de Velázquez).

 

Entre janeiro e março de 2011, a Paços - Galeria Municipal de Torres Vedras acolheu a exposição Vanitas. A obra After the Gold Master Pieces, que integra o acervo do Município, fez parte desta exposição. Pode falar um pouco sobre a exposição e sobre esta série?

A Vanitas é uma forma específica do tema da natureza morta na história de pintura ocidental, onde a caveira é colocada ao lado de frutas, flores ou outros elementos naturais em apodrecimento, demonstrando assim como o ser humano é finito. Na sala principal da Galeria pôde-se observar essa série de desenhos enormes suspensos. Durante um ano desenhei uma notícia trágica por dia, recorrendo a jornais, e posteriormente transpus esses desenhos em grandes manchas de fumo escondidas por elementos florais em tons de ouro. Na realidade mediática da comunicação, as imagens da morte e do sofrimento sucedem-se a uma velocidade que as torna banais.

Esta exposição ocupou vários espaços da Paços - Galeria Municipal, como uma exposição retrospetiva que mostrou o essencial da minha obra realizada até então. Esta e a exposição com o mesmo título realizada em 2013, que teve lugar na Sala do Veado, em Lisboa, por ironia viriam a significar uma espécie de “morte” ou de despedida, pois a partir daí não voltaria mais a pintar a tempo inteiro e em ambiente de atelier.

Noutra sala estavam os “Rostos sem alma” a preto e branco, em que a alma abandona o rosto através dos olhos, nariz ou boca, realizados a partir de fotografias tiradas no metro com uma câmara escondida. Remetendo-nos para o tédio e para os momentos em que nos sentimos vazios ou “mortos” em vida.

E, noutra sala, a série After the Gold Masterpieces apresentava retratos realizados a partir de reproduções a preto e branco de obras do Século de Ouro dos Países Baixos. Esses rostos ganham forma a partir várias camadas de carne e músculo, sem nunca desfigurar por completo o ícone reconhecível nos gestos de tinta.

 

Qual é o processo criativo que dá origem às suas obras?

No diário de Eugène Delacroix lê-se: “no entanto essa inquietação, que resulta do medo de não se vir a ser tão sublime quanto se sente que seria necessário, está longe de ser uma tortura: trata-se antes de um aguilhão, sem o qual nada se faria”. Há esse estímulo, essa procura constante de encontrar material para um novo projeto, e embora essa busca, por vezes angustiante, seja necessária no processo criativo, é quando estamos distraídos ou desligados do desejo desse objetivo que o encontramos. É um pouco como no amor, acontece quando estamos abertos a isso, mas nem por isso quando andamos à procura!

Françoise Gilot (companheira de Picasso entre 1943 – 1953) refere que Picasso comentou um dia ao pintar: “enquanto eu trabalho, deixo o meu corpo do outro lado da porta, da mesma forma que os muçulmanos tiram os seus sapatos antes de entrar na mesquita”. A partir do momento em que surge a ideia, que é tudo, trata-se de colocar mãos à obra e a tela vai nos dizendo o que fazer a seguir. Há uma comunicação entre a tela e o pintor, em que esquecemos o corpo e o nosso pensamento responde às ordens da obra.

 

Durante o processo criativo há espaço para várias obras ao mesmo tempo?

Costumo ter várias telas de vários tamanhos penduradas em simultâneo nas paredes (as maiores) e em cavaletes (as menores) pelo espaço do atelier; embora o formato seja semelhante, quase quadrado. Vou saltando de tela em tela, pois o óleo demora a secar e assim posso-me distrair em rostos diferentes e experimentar diversas paletas de cor. No chão ficam as paletas (placas grandes de acrílico transparente) e as fotocópias (pinto a partir de reproduções de pinturas, fotografias, etc.). Quando um retrato me diz que já está pronto, guardo-o para expor, quando, por outro lado, já está denso demais e já não vai a lado nenhum, retiro a tela da grade e começo tudo de novo.

 

Quando é que um trabalho está pronto?

Estou sempre insatisfeita. Considero a obra pronta para expor quando a tela me transmite temor, força e impacto, mas nunca considero uma pintura acabada, até porque se estivesse acabada perderia vida. A mestria consiste no saber parar, recusando aceitar a possibilidade de que algo seja perfeito, deixando a obra à continuação, ao tempo. As obras inacabadas, se pensarmos nas de Leonardo da Vinci por exemplo, têm a frescura de uma juventude plena e eterna. A obra não afirma senão aquilo que a fez ser obra: o chamamento que me fez começa-la e o processo (o qual gosto de deixar à vista, na transparência das pinceladas, trata-se de “desocultar” o gesto explícito do ato de pintar).

Publicado: 13.08.2020 - 11:29 horas
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