Torres Vedras

Leonel Miranda

01.07.2020

Pouco tempo depois da inauguração da rede de ciclovias da Cidade, a [Torres Vedras] esteve à conversa com Leonel Miranda, torriense que é uma (re)conhecida velha glória do ciclismo nacional. Uma entrevista que se centrou na carreira desportiva de Leonel Miranda, mas em que também se abordou outros temas, como a utilização da bicicleta no quotidiano, a evolução do ciclismo, o progresso que se tem verificado no Concelho ou o futuro Museu Joaquim Agostinho. “Nada se consegue sem grande esforço” é um conselho que Leonel Miranda deixa às gerações mais jovens, ele que relembrou o grande espírito de sacrifício que foi necessário ter para singrar no mundo do ciclismo…



Começava por perguntar se considera positiva a recente iniciativa da Câmara Municipal de construir uma rede de ciclovias na Cidade, sendo que é homenageado nessa rede com a atribuição do seu nome a um troço da mesma?

Penso que esta iniciativa é muito positiva nos tempos que correm porque hoje já se muita vê gente a andar de bicicleta na Cidade e esse espaço foi criado para que os utilizadores de bicicleta estejam mais protegidos e, no caso daqueles que a usam para fazer exercício, consigam fazer melhor a sua manutenção física. Penso que foi, de facto, uma iniciativa muito bem pensada pela Câmara Municipal.

 

Há algumas décadas que abandonou o ciclismo profissional, mas continua a praticar o ciclismo de uma forma informal…

Sim, tenho mesmo necessidade de andar de bicicleta, porque imprimi ao meu organismo um ritmo muito elevado na alta competição que pratiquei, que se não puxar pelo meu corpo não me sinto tão bem. Faz-me muito bem andar de bicicleta, se bem que às vezes também faço manutenção a pé, mas a bicicleta é a minha paixão. 

 

E foi uma paixão que se iniciou quando era jovem e se deslocava para o seu trabalho de bicicleta. Foi nesse contexto que acabou por participar pela primeira vez numa prova de ciclismo no decorrer das festividades da aldeia de onde é oriundo, a Carregueira…

Sim, utilizava a bicicleta para ir para o trabalho e nessa altura estava longe de mim pensar em ser atleta, já admirava alguns ciclistas que participavam na Volta a Portugal, mas não pensava ter condições para ser ciclista. No entanto, atendendo ao percurso que fazia de casa para o trabalho e do trabalho para casa, comecei a desenvolver o meu organismo. É que na altura trabalhava em Pêro Pinheiro, na Sicré, e deslocava-me da Carregueira para lá à 2.ª feira e fazia o trajeto inverso ao sábado à tarde. Foi então que um colega me entusiasmou a participar numa prova de ciclismo na minha aldeia porque se apercebia que eu imprimia um andamento um bocadinho superior em relação aos colegas que vinham comigo do trabalho. Como ganhei logo a primeira corrida, descobri que tinha realmente potencialidade para continuar a praticar o ciclismo.

 

E continuou a competir em festas populares…

Inicialmente foi assim. Onde havia festas havia corridas, eu ia lá correr e normalmente ganhava. Em 1963 fui competir para a equipa de Lousa, que recebia muitos atletas da região de Torres e não só, e já tinha uma equipa de populares organizada. No Lousa ganhávamos as corridas quase todas, ganhei ao todo 44, entre elas o Grande Prémio de Aveiro e o do Porto.

 


Entretanto dá o salto para o Sporting…

Sim, no ano seguinte fui para o Sporting como amador.

 

Chega então ao ponto alto da sua carreira…

Como amador no Sporting tornei-me logo uma revelação. Fui logo selecionado para o Campeonato do Mundo em Inglaterra. E ir a Inglaterra tornou-se um sonho para mim por causa do Big Ben. É que quando estava na escola primária lembro-me de ter perguntado à professora qual era o relógio que tinha as horas de referência para todos os outros, e ela me responder que era um que estava na Inglaterra, que era precisamente o Big Ben. E eu ainda miúdo pensei que se um dia visse esse relógio significava que tinha um nível de vida melhor que o dos meus pais, que eram pessoas do campo. E daí, ser selecionado para esse campeonato do mundo, foi de facto um marco para mim. Fiquei em 12.º lugar. No ano seguinte passei a profissional, situação em que me mantive até 74, tendo participado em 10 voltas a Portugal.

 

Conseguiu um terceiro lugar na Volta a Portugal, em 1968, e na edição do ano seguinte dessa prova venceu seis etapas…

Sim, penso que apenas o Cândido Barbosa conseguiu igualar esse recorde. Ganhei ainda três vezes o prémio da montanha, ganhei seis vezes a camisola verde, venci três vezes o prémio combinado e venci quatro vezes o prémio das metas volantes. Participei ainda numa Volta à Suíça, numa Volta à Espanha, em duas voltas ao Estado de S. Paulo e na Escalada de Montjuich, em Barcelona. Muito importante também para mim foi ter vencido o Prémio Stromp, até porque naquele tempo esse prémio era praticamente só atribuído a futebolistas e distinguia anualmente apenas um atleta.

A equipa do Sporting era de longe a melhor equipa de ciclismo. Éramos como uma família, dávamo-nos todos muito bem. Tive o privilégio de correr na mesma equipa com o Joaquim Agostinho, esse grande atleta de todos os tempos, com quem sempre me dei muito bem, tanto que sou padrinho da sua filha.

Devo também dizer que o ciclismo, embora seja um dos desportos mais duros, é muito fascinante. Chegamos pessimamente mal no fim das etapas, mas no outro dia já estamos prontos para outra. Lembro-me que nós levávamos as camisolas dos clubes às terras, porque as pessoas naquele tempo não tinham hipótese de vir a Lisboa ver o Sporting, o Benfica ou o Porto. No final das etapas esperava-nos uma multidão que queria quase raptar-nos, tocar nas camisolas, era realmente uma alegria muito grande.

 

A maior parte das pessoas provavelmente não sabe, mas o fenómeno do clubismo em Portugal começou precisamente com o ciclismo. Aqui na região havia os que eram adeptos do Benfica por causa do Nicolau e os que seguiam o Sporting por causa do Trindade. A paixão clubística em Portugal não começou pelo futebol, mas pelo ciclismo…

Eu tenho um grande orgulho em ter feito parte da geração do ciclismo nos clubes. Hoje já não é assim. Lembro-me que não havia escola nenhuma em que os professores não pusessem os alunos à beira da estrada para ver a caravana do ciclismo passar. Era realmente uma paixão. Hoje é um bocado diferente. Há mais desportos. Os desportos naquele tempo eram praticamente o futebol, o ciclismo e o hóquei. Os outros desportos funcionavam de forma muito diminuta. O ciclismo tinha realmente naquela época uma dinâmica muito grande.

 

Foi também treinador de ciclismo. Como foi esse percurso depois de ter acabado a sua carreira de ciclista profissional?

Entretanto estabeleci-me com um pronto-a-vestir para crianças em Torres Vedras. Em 1980 o dr. Artur Lopes veio buscar-me para ir treinar o Lousa, tendo com essa equipa ganho a Volta a Portugal, com o Francisco Miranda. Mas como tinha dificuldade em conciliar o meu negócio com o ciclismo, acabei por me afastar do ciclismo durante alguns anos. Até que em 87 fui abordado pelo Álvaro Silva da Sicasal para ir treinar essa equipa. Combinei que apenas faria uma época para organizar a equipa, mas ganhámos logo a Volta a Portugal, com o Manuel Cunha. Entretanto eu saí, mas as coisas não correram para lá muito bem, e o senhor Álvaro voltou de novo à carga e veio novamente buscar-me e não fui capaz de lhe dizer que não, atendendo ao relacionamento saudável que tinha com ele e com toda a equipa. E como gostava do ciclismo e do projeto, voltei. Fiz um esforço para conciliar a minha atividade comercial com o ciclismo e voltei novamente a ganhar a Volta a Portugal, agora com o Joaquim Gomes, que é atualmente o diretor da competição. Em 1990 tive inclusivamente o privilégio de desempenhar o cargo de selecionador nacional.

 


O ciclismo é muito diferente atualmente em relação ao que era no seu tempo?

Sim, é diferente por várias razões. As máquinas evoluíram muito, as técnicas também evoluíram. Mas hoje há realmente alguns atletas que não se entregam tanto ao esforço físico, porque o ciclismo exige um esforço terrível. Muitas vezes íamos até quase cair para o lado. Hoje, os jovens, atendendo às facilidades que existem, não se sacrificam tanto, nalguns casos não há uma entrega tão grande do atleta no aspeto do esforço e do espírito de sacrifício. E por isso aproveito para deixar uma mensagem aos jovens: nada se consegue sem grande esforço.

Lembro-me, por exemplo, de uma etapa, numa chegada a Montemor, em que eu ia pessimamente mal, ia quase a desistir. E como era o único do Sporting que ia naquele pelotão, pensei que desistir seria uma vergonha para mim. E pensei: eu vou até cair para o lado. Se caísse para o lado, tinha uma “desculpa”. Mas entretanto reparei que os meus colegas iam pior do que eu. Houve entretanto um que desistiu e eu pensei para mim que aquilo ia tudo preso por arames. Então, animei, e acabei até por ganhar essa etapa. Isso foi um marco muito importante na minha carreira, porque descobri que nós não sabemos o limite da nossa capacidade. Aliás, isso serviu de lição para a minha vida. Desistir não é vergonha, mas desistir deixou de estar no meu imaginário, seja naquilo que for. E isso valorizou-me mais como ser humano, passei a ver de outra forma as coisas boas e más da vida, e faz-me pensar que já passei por muitas dificuldades na minha vida e quando aparece mais uma dificuldade eu procuro ultrapassá-la.

 

Sente que existe uma grande diferença entre a sua geração e as gerações mais jovens?

Ao contrário da opinião de muitos, eu acho que há muito boa juventude. A juventude evoluiu muito. A partir da minha geração houve um grande acesso às faculdades, ao ensino. No meu tempo, na juventude, tínhamos de trabalhar mais. A geração dos meus filhos já foi uma geração muito boa. Claro que depois há os que não aproveitam, mas a maioria aproveitou. É uma juventude muito à frente. Tem sido muito bom, principalmente para Portugal, que tem evoluído muito.

 


Como tem visto a evolução do Concelho ao longo das suas décadas de vida? Uma evolução que em termos materiais tem trazido grandes benefícios às populações…

Aliás, numa entrevista que me fizeram na Flama, aí no início da minha carreira, perguntaram-me o que faria na minha terra se tivesse dinheiro e poder. E eu, já naquela altura, como tinha ido para Lisboa com 11 anos trabalhar para a mercearia do meu padrinho, via a diferença entre a cidade e as aldeias, que não tinham nada. Disse então na Flama que, se pudesse, o que trazia para a minha terra era água, luz e esgotos, que era o que nós não tínhamos. Felizmente que a seguir ao 25 de abril verificou-se uma grande evolução. As pessoas às vezes esquecem-se um bocadinho disso, mas é uma realidade, embora haja também algumas coisas negativas. Mas eu acho que as positivas superaram muito as negativas.

Em relação especificamente a Torres, notei uma grande diferença quando passou de vila a cidade. Houve realmente um salto muito significativo, uma evolução muito rápida e muito grande. Eu particularmente, modéstia à parte, devo dizer que fiz a melhor casa de pronto-a-vestir para criança de Torres Vedras. Durante a hora de expediente, nunca me lembro da loja estar vazia. É um orgulho muito grande, porque hoje ainda há muita gente que se lembra da loja do Leonel Miranda em Torres Vedras.

 

Qual é a sua opinião em relação à iniciativa da Câmara Municipal de construir o Museu Joaquim Agostinho, que é um equipamento que homenageará não apenas Joaquim Agostinho, mas todos os ciclistas oriundos do Concelho?

Eu acho que é realmente uma ideia muito boa, porque há muito espólio, há muita coisa que está escondida, que deve ficar à disposição do público. Há gente que gosta de saber histórias, coisas que ficaram nos jornais, ficaram no passado. Acho que muita gente virá ao museu.

 

Gostaria de deixar alguma mensagem aos seus conterrâneos nesta época mais delicada em que vivemos, relacionada com a pandemia provocada pela doença Covid-19?

Sim. Sem dúvida que estamos a passar por um dos momentos mais difíceis das nossas gerações. Deve haver um grande respeito de uns pelos outros, e nalguns casos infelizmente não tem havido. O facto é que estamos todos no mesmo barco. Estamos numa fase difícil, mas sei que vamos ultrapassá-la. Uma palavra de apreço também para os que estão na linha da frente. E que aqueles que são mais levianos se lembrem que aqueles que estão na linha da frente estão numa luta tremenda…



Última atualização: 05.08.2020 - 14:30 horas
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