Torres Vedras

Gonçalo Bernardes

01.03.2013

Gonçalo Bernardes, cientista e empreendedor

Gonçalo Bernardes é um jovem torriense que se tem vindo a destacar no panorama científico internacional. Recentemente foi-lhe atribuída uma bolsa pela Royal Society para desenvolver um projeto de investigação na Universidade de Cambridge na área do cancro. À [Torres Vedras] este jovem cientista e empreendendor falou sobre essa nova experiência que está a viver, o seu percurso, os desenvolvimentos na área da medicina, as diferenças entre as realidades portuguesa e estrangeira e a sua ligação a Torres Vedras. Na opinião de Gonçalo Bernardes a evolução do país deve passar em grande medida pela educação, a criação de conhecimento e o desenvolvimento de uma sociedade pautada pelo mérito e a excelência...

 

Começava por perguntar ao Gonçalo como surgiu a oportunidade de ir para a Universidade de Cambridge realizar uma investigação relacionada com a criação de um novo tratamento para o cancro?

Esta oportunidade surge de todo um percurso que eu fui fazendo e constitui-se efetivamente como um importante passo na minha carreira. Surge a partir de uma bolsa que me foi concedida em 2012 pela Royal Society, para um período de cinco anos, no valor de um milhão de euros. Sou o 25.º português desde o século XVI a obter essa bolsa. De cerca de 3 mil candidaturas houve 40 jovens que foram escolhidos independentemente da sua nacionalidade e área de conhecimento para desenvolverem em Inglaterra o seu projeto e eu sou um deles. Lidero assim um grupo de investigação naquela que é considerada de há 15 anos para cá a melhor universidade do mundo havendo uma componente menor de docência, de cerca de 10%, ao contrário do que se passa nas universidades portuguesas. Cambridge tem um ambiente extraordinário e único, proporcionando o acesso aos melhores profissionais em Física, em Medicina, em Biologia, seja em que área for, o que me permite ter uma abordagem integrada aos problemas, não limitada apenas à minha área de conhecimento.

Cambridge tem um ambiente extraordinário e único, proporcionando o acesso aos melhores profissionais em Física, em Medicina, em Biologia, seja em que área for (...)

Como foi então o seu percurso até chegar a este patamar?

Estudei em Torres Vedras até ao 12.º ano e quando acabei o secundário não tinha bem a certeza da área que queria seguir. Sempre gostei de matemática e como era a disciplina em que tinha melhores notas, decidi concorrer a Matemática Aplicada, e entrei. No entanto não gostei do curso e no ano seguinte mudei para Química. Rapidamente percebi que química me daria ferramentas que me permitirião entender um sem número de processos que determinam a nossa biologia. E realmente toda a minha linha de trabalho hoje é nas interfaces, entre a química, a biologia e as medicinas, onde procuro compreender processos biológicos do ponto de vista molecular, por forma a desenvolver novos tratamentos que sejam mais seletivos, mais seguros, mais eficazes.

Quando estava no 4.º ano do curso tive a oportunidade de ir fazer o estágio para Oxford, com o apoio de uma bolsa Leonardo da Vinci. E foi realmente a abertura de todo um novo mundo. Embora fosse um dos “top 5%” na minha licenciatura, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, senti uma grande diferença relativamente aos padrões de exigência em Oxford. Precisei de fazer uma luta de trás para a frente, como eu costumo dizer, para conseguir acompanhar os meus colegas. Chave neste processo foi poder fazer todo este caminho com a Filipa, a minha mulher, que fez o mesmo percurso académico. Devo realçar que Oxford proporciona um ambiente único para aprender, investigar e conhecer pessoas extraordinárias. Nesse seguimento tive a oportunidade de iniciar o doutoramento em Oxford em “Quimical Biology”. E especializei-me na modificação de proteínas, criei uma série de métodos que permitem através do uso de química orgânica modificar proteínas de modo seletivo, sendo que muitos desses métodos são hoje a base para o desenvolvimento de novas terapias, nomeadamente na área de anticorpos aos quais conjugamos drogas tóxicas. Desenvolvi essa vertente também para a área de novas vacinas, neste caso não em cancro, mas em agentes virais, numa colaboração que está em curso com a empresa Novartis Vaccines.

O meu trabalho resultou até ao momento em 26 artigos científicos publicados em revistas internacionais, também em 4 patentes, tendo sido apresentado em mais de 50 conferências pelo mundo inteiro. E todos os projetos que consegui angariar até hoje superam os 2 milhões de euros em termos de financiamento.

 

A sua atividade tem então também se estendido à indústria farmacêutica…

Sim, consegui criar um conjunto de ferramentas que permitem estreitar as relações entre o mundo académico e o mundo industrial, tendo colaborações muito fortes com a indústria farmacêutica na área das vacinas e em cancro. Estou até a ponderar criar uma nova empresa em Portugal nesta última área, que me permita tirar partido dos meus conhecimentos. Estou também envolvido numa série de projetos em Portugal, nomeadamente num pequeno laboratório que vou iniciar no Instituto de Medicina Molecular que fica no campus do Hospital de Santa Maria, e também tenho uma colaboração com uma empresa de tecnologia da qual sou vice-presidente, a Domatica Global Solutions, onde foi desenvolvida tecnologia que permite conectar o mundo físico ao mundo lógico. No fundo, adoro tecnologia e conceber formas para a usar de modo a criar valor e melhorar os padrões de vida das populações.

 

E que trabalho está concretamente a desenvolver no intuito de encontrar um novo tratamento para o cancro?

O nosso interesse passa por arranjar novas formas de entregar drogas muito tóxicas de um modo específico às células que estão doentes. O maior problema associado à quimioterapia convencional são as doses limitadas que podemos utilizar da droga já que é demasiado tóxica tanto para as células que estão doentes como para as saudáveis, sendo os efeitos secundários muito debilitantes para os pacientes. O que pretendemos assim é criar métodos seletivos utilizando moléculas que reconheçam especificamente as células cancerígenas, permitindo que essas moléculas sejam usadas como veículos, as chamadas “magic bullets”, para entregar essas drogas muito tóxicas às células cancerígenas, e com isto não atacar as células que são saudáveis, possibilitando utilizar uma quantidade superior de droga. Desta forma as chances de erradicar a doença na sua fase mais primária aumentam consideravelmente.

O mesmo se passa nos estudos que queremos desenvolver na área de novas vacinas em HIV. A ideia é sempre por meio da precisão molecular tentar obter moléculas que induzam uma resposta imunitária mais robusta. Sempre com uma grande base de conhecimento integrado, desde química, biologia, à medicina, tudo a trabalhar com o mesmo objetivo.

 

Qual é para si a chave do sucesso profissional?

A chave do sucesso em qualquer área é o trabalho, a coragem, a curiosidade e a humildade.

 

Na área da medicina que prioridades em termos de investigação acha que deveriam existir?

Eu creio que há efetivamente muito trabalho que pode ser feito na área da saúde e dos respetivos tratamentos que podem ser disponibilizados. Existem áreas prioritárias que são as doenças infecciosas, das quais o vírus HIV é uma delas. Existe também uma forte necessidade de novos tratamentos e métodos de diagnóstico que permitam detetar o cancro numa fase mais primária. E há o caso das doenças neuro-degenerativas, doenças em relação às quais existe uma forte aposta das empresas farmacêuticas devido ao facto de serem cada vez mais relevantes em sociedades com uma grande percentagem de população envelhecida. Por outro lado, existe ainda uma grande prevalência da malária, que é a doença que mais mata no planeta, sobretudo crianças. E há também um ressurgimento muito grave de tuberculose em países do terceiro mundo, que se está a estender cada vez mais aos países industrializados.

 

Como vê a evolução da medicina?

O tempo e custo necessários para traduzir uma descoberta em laboratório num produto é longo e dispendioso. Em média são necessários 10 a 15 anos e um investimento de 2 mil milhões de dólares com uma taxa de sucesso relativamente baixa, sendo que muitos produtos falham nos últimos passos. Até hoje houve sempre um grande desfasamento entre a indústria farmacêutica e os grupos de investigação. No entanto esta situação está gradualmente a mudar com a necessidade crescente de tratamentos mais seletivos, eficazes e seguros. O risco passou a estar cada vez mais do lado de novas empresas start-up que são formadas com base em investigação nas universidades. Os investimentos partem de fundos de risco sendo que a indústria farmacêutica entra já quando um produto está pronto para ensaios clínicos. Este processo levou a uma forte diminuição dos programas de investigação na indústria farmacêutica e a um aumento de novas empresas e de oportunidades para estreitar a relação entre universidades e a indústria.  Em Portugal esta tendência é, no entanto, ainda pouco visível, podendo tal ser visto como um resultado da fraca componente de investigação das nossas universidades. No entanto, em casos pontuais, esta situação está a mudar.

Até hoje houve sempre um grande desfasamento entre a indústria farmacêutica e os grupos de investigação. No entanto esta situação está gradualmente a mudar (...)

Que principais diferenças encontra entre a realidade portuguesa e a do estrangeiro?

Vivi seis anos em Oxford, um ano em Berlim e dois em Zurique. Mas devo dizer que não gosto de comparar diferentes realidades pois estas também envolvem um certo grau de subjetividade.

De forma genérica, acho que há sociedades que estão mais viradas para o essencial e outras para o acessório. E aquilo que vejo é que sociedades com menos conhecimento estão mais viradas para o acessório ao contrário do que se passa com as sociedades mais desenvolvidas. E o essencial é a educação e o conhecimento! Por isso é fundamental fazer chegar as oportunidades a pessoas de todos os backgrounds sociais, de todas as raças, e isto só é possível se o mérito estiver na base do sucesso profissional.

Mas não nos esqueçamos que em 1974 Portugal tinha o mesmo nível de literacia da Inglaterra em 1800. Eu acredito que aqui há todo um trabalho a desenvolver a longo prazo na educação e formação das pessoas, necessitamos de uma maior exigência e de padrões de qualidade mais elevados no nosso ensino e nas nossas empresas.

É preciso que nos foquemos naquilo que é importante e essencial, no que nos dá valor, e só com isso poderemos ter uma aproximação aos padrões de vida dos países mais desenvolvidos e criar uma sociedade mais próspera. Os nossos passos são lentos, devia haver uma direção e um caminho futuro bem traçado.

 

Não nota uma mentalidade muito mais pragmática em países como a Inglaterra, ao passo que os países da Europa continental sempre desenvolveram um conhecimento mais especulativo e abstracionista?

Sem dúvida, os países anglo-saxónicos têm uma mentalidade muito mais prática, onde a educação e o conhecimento sempre estiveram mais ligados à realidade concreta. A própria língua é muito mais prática e direta.

 

Como foi o seu crescimento e vivência em Torres Vedras?

Em Torres Vedras pude conviver imenso com os meus amigos na rua, é uma cidade bastante segura, perto do mar, de Lisboa, praticamente “dentro” do aeroporto, e isso para mim é fundamental. É onde eu vivo quando estou em Portugal, normalmente de quinta-feira à noite a segunda-feira de manhã. Permitiu-me coisas tão boas como ir a pé para a escola, fazer desporto, estudar em escolas de línguas. Aqui, como não poderia deixar de ser, desenvolvi o gosto pelo Carnaval e atualmente até sou um dos fidalgos do mesmo.

Em Torres Vedras pude conviver imenso com os meus amigos na rua, é uma cidade bastante segura, perto do mar, de Lisboa, praticamente “dentro” do aeroporto (...)

Como tem visto a evolução da sua terra ao longo dos anos?

Torres Vedras evoluiu e tem uma oferta razoável em termos de educação, além de ter ganho um acesso muito bom a Lisboa. O futuro modelo ideal das cidades é o das médias cidades, que proporcionem condições para se desenvolver novos pólos de indústria especializada bem conectados com o mundo, onde se possa facultar todas as condições para que os habitantes se sintam bem e onde não haja os desajustamentos que existem nas grandes metrópoles nas quais se demora horas a chegar aos locais de trabalho e há uma grande insegurança.

 

Há alguma mensagem que gostasse de deixar?

A mensagem que gostava de deixar aos jovens é que nunca deixem de sonhar, que nunca deixem de tentar e que é preciso coragem para tentar. Talento e perseverança são necessários para demonstrar o nosso valor. Todos temos um papel chave no crescimento das nossas sociedades e do mundo, independentemente do nosso background social e trabalho, e devemos sempre desempenhar as nossas funções com o máximo de excelência.

 

Considera-se uma pessoa concretizada?

Sempre acreditei que era possível demonstrar o meu valor, e sempre soube que é necessário muito esforço e trabalho para o conseguir. Acreditando e com muita perseverança, fui concretizando aquilo a que me fui propondo, o que me dá muito gozo e me torna muito feliz.

Entrevista extraída da edição nº13 (março/abril de 2013) da revista municipal [Torres Vedras]

Última atualização: 13.08.2019 - 12:22 horas
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