Torres Vedras

Rita Carmo

07.10.2021

Em 2011, a Paços – Galeria Municipal de Torres Vedras recebeu a exposição Um quarto só dela, de Rita CarmoHoje, a artista dá a conhecer o seu percurso e o processo que deu origem àquela que foi a “primeira exposição individual em Portugal e a primeira em que me foi possível dar a ver o carácter multidisciplinar da minha prática artística”.



Muito do seu trabalho assenta num território onde a memória, a infância, o biográfico e o espaço casa são alicerces. Como foi esse primeiro encontro com as Artes Plásticas?

Apesar de gostar muito de desenhar, pintar, modelar, construir, não era realmente uma criança que já sabia que queria ser artista. Aquilo com que eu vibrava mais era mesmo dançar, cantar, saltar à corda, ao eixo, fazer o pino,  expressar-me fisicamente. Penso que esse impulso se materializou mais tarde quando comecei a introduzir a performance no meu trabalho.

O meu primeiro contacto com as artes plásticas, como as entendo agora, foi claramente através da minha mãe e do meu pai, não só porque também desenhavam e pintavam e nos estimulavam a fazer muitas atividades criativas, mas também porque vivíamos dentro duma “criação artística” que realizaram em conjunto: a nossa casa. Para além de terem planeado o espaço da casa e escolhido tudo o que estava nela, pintaram e criaram móveis, cortinados, roupas e todos os revestimentos e padrões que escolheram eram muito coloridos, com texturas diferentes e estimulantes esteticamente. Por outro lado, adaptavam e alteravam constantemente o espaço, uma das atividades mais divertidas e maravilhosas que aconteciam em família e em que tanto eu como o meu irmão participávamos ativamente.

Acho mesmo que foi essa experiência que fui revivendo à medida que comecei a fazer instalações e performances. A possibilidade de transformação do espaço, a alteração de funções, o fazermos por nós o que precisamos para criar um ambiente, tem tudo a ver com a forma como hoje faço e vivencio o meu trabalho artístico. Inclusivamente o projeto que estou a desenvolver é baseado nos materiais de construção dessa casa e em todas estas vivências.

A escolha de seguir o ensino artístico surgiu no final de uma sequência de outras profissões. Depois de ter querido ser detetive, arqueóloga e estilista de moda decidi escolher artes visuais no 10º ano. Pouco a pouco, a minha vontade de desenhar roupa foi-se transformando apenas na vontade de desenhar os corpos que vestiam a roupa.

Embora tenha entrado na ESAD [Escola Superior de Arte e Design] das Caldas da Rainha para fazer Pintura, na verdade acho que nunca pensei nessa ideia de ser artista e de que poderia ser a minha profissão, era apenas e, claramente, aquilo que eu queria fazer naquele momento.

Essa certeza começou a chegar no 3º ano da Licenciatura quando consegui criar um fluxo de trabalho intenso e de produção coesa e multidisciplinar que já nada tinha a ver com respostas a exercícios mas sim com um trabalho mesmo pessoal, que me era necessário e feito para mim.

Desde essa altura até hoje fui-me confrontando com vários contratempos e dúvidas das mais variadas naturezas relativamente a ser artista mas nunca desisti totalmente dessa ideia apesar das dificuldades de pô-la em prática.

E só agora, depois de ter criado a residência artística “Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!” e de finalmente ter tido a oportunidade de dedicar tempo contínuo ao meu trabalho, é que voltei a ter a certeza de que é isto que quero fazer!



No seu artist statement destaca "o desejo de tornar visíveis os contrastes, expondo as suas diferenças e semelhanças, explorando opostos como ocidental e oriental, museu e lar, História e história privada, antigo e novo”. Pode falar um pouco sobre estas marcas que habitam e fazem parte da identidade do seu trabalho?

Essa referência aos contrastes entre pares de aparentes opostos, que está no meu artist statement, surgiu em grande parte por causa de uma das instalações apresentadas na Paços - Galeria, A Room Of Her Own.

Nessa obra há uma parede com muitas e variadas imagens que se justapõem: fotocópias, fotografias, postais e folhetos de museus.

As fotocópias são tiradas de livros de gravuras de anatomia antigas, de livros de História da arte ocidental e oriental, de livros de botânica, catálogos de motivos decorativos de várias épocas, da revista 100 idées, entre outros.

As fotografias foram todas tiradas por mim durante a estadia em Bergen e nas viagens que fiz a Oslo, Rosendal, Copenhaga, NyKoping e Berlim. São fotografias do meu espaço de trabalho na faculdade, do meu quarto, das minhas roupas, de árvores, de passeios em jardins, na montanha, mas também das minhas visitas a museus de Arte Antiga e de História Natural.

No seu conjunto estes elementos não tinham aparentemente muito em comum mas a sua proximidade revelava possíveis relações mais profundas, ativadas também por analogias formais.

Esta peça não teria certamente existido com esta configuração se anos antes não tivesse encontrado alguns artigos na Biblioteca da Gulbenkian sobre o historiador Aby Warburg e o seu Atlas de imagens. E em que ele “falava” exatamente sobre essa possibilidade de ativação do significado das imagens pela sua justaposição, especialmente quando existe algum contraste a nível de origem, área de conhecimento, por exemplo.

De uma forma geral esses eixos contrastantes atravessam quer o meu trabalho anterior quer o atual. O eixo Museu-Lar/casa está presente, por exemplo, na integração de recortes de divisões ou elementos domésticos que depois se apresentam em contexto galerístico em instalações como A Room Of Her Own, Facing You, Amigas para sempre ou Camuflagem #1. Também o projeto em que estou a trabalhar, Materiais de Construção, está sempre a ser desenvolvido em contexto doméstico e utilizando apenas aquilo que tenho à mão, muitas vezes aglutinando progressivamente os objetos da minha casa atual e que mais tarde será inserido num contexto de galeria ou museu. Por outro lado, a criação da Galeria Mergulho, pressupõe também uma constante justaposição, simultaneidade ou alternância da casa, do ateliê e da galeria, e estes contrastes revelam as diferenças e semelhanças de cada espaço.

O eixo antigo-novo está presente quando utilizo, por exemplo, objetos e móveis Ikea e os misturo com outros antigos em 2ª mão como podemos ver nas instalações da exposição Um quarto só dela, ou quando pego nos objetos/roupas da minha infância e os misturo com os da minha casa atual reativando-os e  criando algo que nunca existiu, novo e antigo ao mesmo tempo.

O eixo História-História privada é visível tanto em A Room of Her Own, em que ponho em contraste elementos da História humana ou da arte com a história da minha vida e imagens da produção do meu trabalho artístico, como no trabalho com o espólio da minha família, pertencente aos anos 70/80, em que a história de uma família em particular acaba por revelar também um pouco da  História geral dessas décadas.

A junção e justaposição destes contrastes também revela uma atitude de transgressão do que são os limites pré estabelecidos e que caracteriza muito bem o meu trabalho: pôr coisas no sítio onde não era suposto, criar relações que suscitam surpresa ou confusão, é isto ou é aquilo?

Em relação ao papel do espaço no meu trabalho, seja ele doméstico ou não, o que posso dizer é que gosto de intervir nas três dimensões. Quando pintava adorava criar mundos na superfície, mas sentia, e sinto, uma grande necessidade de estar dentro do que estou a fazer, de agir fisicamente com o corpo todo, não tanto de criar uma realidade ilusória bidimensional, mas de pegar em coisas reais, misturá-las umas com as outras, relacionar-me com os objetos. A ligação com a performance está muito presente mesmo quando o produto final não é uma performance.

No entanto, também há sensações que só posso viver ou passar através da pintura, do desenho ou da escrita, e essa é realmente a razão do meu trabalho ser multidisciplinar.

Em 2011, a Paços – Galeria Municipal recebeu a exposição Um quarto só dela, uma das primeiras exposições em que a instalação e o espaço físico foram explorados. Fale-nos um pouco do conceito da exposição, assim como o processo de construção da mesma.

Um quarto Só Dela foi e é muito especial para mim, e realizá-la nessa altura na Paços - Galeria foi uma oportunidade incrível, quer ao nível pessoal quer profissional.

Foi a minha primeira exposição individual em Portugal e a primeira em que me foi possível dar a ver o carácter multidisciplinar da minha prática artística. Apresentava três instalações: A Room Of Her Own, Facing you e Gabinete-Imaginário (baseada num caderno de desenhos), o conjunto de pinturas Mitologia Pessoal (Por decifrar) e o registo vídeo da performance Danae.

O conceito geral consistia na revelação/apresentação do espaço de exploração pessoal que criei na minha primeira estadia na Noruega como bolseira Erasmus, em 2001.  Esta exposição correspondeu ao final de um processo progressivo de tentativa de definição desse território, que teve como paragens essenciais: o final da estadia Erasmus e o desenvolvimento do projeto How Things Grow and Transform Themselves Into Other Separate Things. Esta mostra assumia-se como um espaço metafórico, uma espécie de imagem tridimensional do imaginário que descobri e criei na Noruega.

Esse imaginário particular nasceu de uma atitude de ir fazendo tudo o que me dava prazer sem pensar se tinha uma coerência ou não, se tinha uma finalidade, deixando-me levar pelos meus desejos e as minhas paixões por imagens, objetos, cores, sons, linguagens, exteriores e interiores. Posso dizer que foi um caminho traçado pelo gosto no sentido mais biológico do termo.

Por não ter sido um trabalho tão filtrado racionalmente, tudo o que produzi era para mim ao mesmo tempo estranho e maravilhoso, e talvez por isso acabei por ter o mesmo impulso que está na base da criação dos primeiros gabinetes de curiosidades do século XVI e XVII: colecionar tudo o que fiz e mostrá-lo dentro de um armário exposto ao olhar de outras pessoas, e também do meu. E essa foi a primeira configuração visível deste território e, digamos, a primeira fase da construção dessa exposição.

Depois desse primeiro momento, aquelas peças começaram a tomar o seu rumo e saíram daquele armário reclamando espaços próprios, crescendo e separando-se em outras obras diferentes. Foi deste movimento que nasceu o projeto How Things Grow And Transform Themselves Into Separate Things que desenvolvi em 2005, novamente na Noruega, com uma bolsa de investigação do Governo Norueguês.

A minha intenção era fazer uma exposição numa casa em que cada peça ocuparia uma divisão, apresentando na primeira sala as fotos a preto e branco do Gabinete de Curiosidades e, de alguma forma, revelando a raiz de cada peça. Esta ideia não se concretizou, mas por causa dela surgiram inesperadas soluções que provavelmente nunca me teriam ocorrido, e que inverteram essa relação com a casa, uma vez que eram agora as próprias obras que integravam em si o espaço doméstico.  Na exposição que realizei na Noruega em 2005 A Room Of Her Own e Facing You apareciam como recortes de divisões instalados num espaço neutro de galeria.

Sendo o espaço um catalisador para a criação do meu trabalho ou para a vontade de o expor, quando tomei contacto com a Paços - Galeria, senti mesmo que aquelas obras tinham encontrado uma casa ideal.

Esse encontro proporcionou adaptações e recriações das peças, mas também a revisão do título da exposição que acabava por revelar uma outra faceta curiosa e determinante para o meu trabalho posterior. Ao olhar e trabalhar sobre algo que tinha construído anos atrás criei um certo distanciamento, já não conseguia identificar o que tinha produzido como totalmente meu, e essa característica refletiu-se em primeiro lugar no título da instalação A Room Of Her Own e depois no título da exposição, aquele “quarto” já não era meu mas sim “Dela”.

Todo o processo foi emocionante, especialmente rever as peças ao vivo e a ligação que se criou entre elas. Ficou mesmo como eu queria, foi um sonho realizado. E só tenho a agradecer todo o apoio prestado pela excelente equipa da Paços - Galeriapara concretizá-lo.

Em plena quarentena, criou a galeria Mergulho e a residência artística “Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!”. Em que é que consistem esses projetos? Está a desenvolver outros trabalhos?

Ambos os projetos surgiram como forma de solucionar duas questões com que me vinha a debater: a crescente frustração que sentia por não conseguir desenvolver o meu trabalho de forma aprofundada e a dificuldade em procurar oportunidades de exposição. Essas dificuldades resultavam sobretudo do desafio que era, e é, conciliar o meu trabalho artístico com a minha atividade como formadora de Desenho.

A quarentena acendeu e acelerou  ainda mais o desejo de investir nesta área, uma vez que o trabalho duplicou para fazermos a transição para formato online, e cada vez mais via o projeto ao fundo do túnel. Num dia particularmente estafante, recordei-me de que tinha uma semana de férias marcada e daí a declará-la residência artística foi um instante. Chamei-lhe “Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!” porque era mesmo isso que significava para mim ter a possibilidade de estar totalmente dedicada ao meu trabalho durante sete dias inteiros: uma verdadeira viagem a um paraíso tropical!

A experiência foi espetacular, deu-me um grande prazer voltar a pegar em ideias que estavam à minha espera há anos e concretizá-las sem pressões. Entretanto a residência tornou-se contínua, realizada em períodos intensivos ao longo do ano, permitindo-me finalmente ir desenvolvendo o  projeto Materiais de construção.

Quando iniciei a segunda residência imaginei expor os resultados no final, mas como só tinha um mês, entre julho e agosto, apercebi-me da impossibilidade de encontrar um espaço exterior, e por isso resolvi fazer apenas uma mostra online. No entanto, à medida que o tempo se aproximava do fim e o ateliê se ia expandindo pelo resto da casa, de repente pensei: E porque não abrir a casa e mostrar aqui as peças no contexto doméstico?

Criei assim a Galeria Mergulho e a sua primeira exposição: Materiais de Construção - Ensaio aberto #1.

A Galeria assume-se como um espaço fisicamente nómada, que coincide com as casas em que vivo, mas que poderá existir em qualquer lugar e tem também uma presença online via Facebook. Por enquanto alberga as minhas residências artísticas e divulga o meu trabalho, mas a minha ideia é também abri-la a outros e outras artistas.

Atualmente, como já referi, continuo a desenvolver o projeto Materiais de Construção no qual relaciono os materiais de construção da minha casa de infância com os materiais de construção da minha identidade. Não só os materiais concretos da casa mas também toda a cultura material e imaterial da família. As obras que desenvolvi até ao momento continuam a ser multidisciplinares (Instalação, Objetos, Fotografia, Performance fotográfica).

Em Novembro será possível ver alguns destes trabalhos no Espaço 62 em Lisboa, na iniciativa "1 mês 1 artista", e em breve voltarei a abrir a Galeria Mergulho para um novo Ensaio Aberto com os resultados das residências deste ano.

 

Legenda das fotografias:

Fotografia 1 - Facing you, Instalação 2005
Fotografia 2 - Jogo de Construção, Performance fotográfica (excerto), 2021
Fotografia 3 -  A Room Of Her Own, Instalação,  2005
Fotografia 4 - Camuflagem #1, Instalação, 2020 Foto-Paula Nobre
Fotografia 5 - Mitologia Pessoal (Por decifrar), Óleo s papel, 2002
Fotografia 6 - La Vie en Rose, Maquete para instalação, 2020

Última atualização: 08.10.2021 - 11:46 horas
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