Torres Vedras

José Joaquim Santos

01.11.2014

Um carpinteiro reformado que lê Darwin e Carlos Sagan e observa as estrelas. E reuniu uma imensa coleção de fósseis paleontológicos que recentemente cedeu ao Município. Assim é José Joaquim Santos. Poucos dias depois de ter terminado a exposição “Dinossauros que viverem na nossa terra”, que esteve patente durante cerca de dois anos no Museu Municipal Leonel Trindade, e na qual a Sociedade de Historia Natural deu a conhecer os primeiros quinze anos da sua atividade, a [Torres Vedras] esteve à conversa com José Joaquim dos Santos na sua casa, nos Casalinhos de Alfaiata, sendo que os seus achados também estiveram patentes nessa mostra. Um “caçador de fósseis, não mata, ressuscita…”, explicou este “naturalista”, como se define, que aborda nesta entrevista não só a sua atividade relacionada com a paleontologia, mas também outros assuntos, como o seu interesse pela “beleza do cosmos”, o atual (des)investimento na área científica ou a evolução do concelho…

Como começou o seu interesse pela paleontologia?

Começou a sério há uns 27 anos quando ao fim da tarde ia correr a pé pelos campos da minha aldeia, e ao sair do campo de futebol do Casalinhense, num valado de um terreno de um senhor amigo, vi uns troncos de madeira feitos em pedra. Achei piada, pois também lidava com madeira. Pensava que só nos Estados Unidos, no Arizona, havia madeira petrificada. Afinal na zona Oeste, em especial em Torres Vedras, também se encontrava, em particular nas Palhagueiras. Mas recordo-me que já quando tinha os meus 8 anos e numa visita de campo feita pela professora, encontramos na ladeira que vem de Santa Cruz muitos bivalves marinhos, e na altura ela dissera que o mar tinha chegado ali há muito tempo. Isso ficou-me sempre na memória…

o caçador de fósseis, não mata, ressuscita

Mais tarde, por volta dos 20 e poucos anos, deparei-me com conchas na Praia Azul, as chamadas trigónias lusitanas, o que também me chamou a atenção. Mas foi a partir dos tais troncos de árvore, há uns 27 anos, que comecei a sério nisto. Até aí a minha vida era preenchida pelo trabalho e pelo futebol amador, como jogador e dirigente, tendo também feito parte da arbitragem. Também nessa altura, e procurando troncos petrificados nas arribas entre Porto Novo e Santa Rita, encontrei uma pedra diferente, que não era madeira nem era um calhau qualquer, era um osso petrificado. Depois desse novo achado, juntou-se a mim um colega serralheiro de profissão e também agricultor, o Luís Paulo, que durante muitos anos me ajudou a encontrar, a transportar e a fazer companhia nas arribas e nos campos. Comecei então a procurar fósseis nas arribas de Torres Vedras, Lourinhã, e Peniche, e era muito fácil encontrá-los pois alguns estavam expostos há muitos anos, talvez centenas. Não se via ninguém à procura, eramos praticamente os únicos. Eram baldes cheios de ossos, alguns deformados, pois estavam à solta no mar, outros em bom estado, e com o passar do tempo fomos aperfeiçoando a nossa vista a tal ponto que era fácil encontrar nos sítios mais escondidos….

O que me influenciou também bastante foi a escavação de um dinossauro em Porto Dinheiro no ano de 1997. Na altura ia para essa praia e atraiu-me aquela jazida mesmo ao cimo da arriba, pois tive oportunidade de ver as escavações feitas pelos paleontólogos do Museu de História Natural de Lisboa e do Museu da Lourinhã. Nessa altura encontrei junto ao mar madeira vegetal ou feita em carvão e alguns objetos pequenos em osso.

De resto, estava numa fase da vida em que começava a saber o que queria, comecei e ter a minha posição na vida, a ter a minha opinião sobre as coisas, isto fruto de ler muito e meditar um pouco... Hoje, bem ou mal, tenho a minha maneira de ver as coisas e para mim a Natureza é o máximo…

Às vezes tratam-me por paleontólogo amador mas sinto-me mais um curioso naturalista, porque o que gosto mesmo é da Natureza, que é impressionante…

E o interesse pela Natureza tem a ver com a sensibilidade. Se vir uma pedra com formas esquisitas, deformada, com buracos, isso enche-me os olhos, acho graça porque é um objeto que a Natureza formou há milhões de anos atrás e tem a sua história, como qualquer pedra…

Dos fósseis que encontrou, quais salienta?

São milhares de peças encontradas, é difícil... Em Cambelas, por exemplo, na encosta da Pedra da Ursa, encontramos muitas vertebras, costelas, dentes, um fémur completo com 1,70, que esteve já até em exposição em Castelo Branco e em Torres Vedras.

Também na Lourinhã e Peniche se encontrou muitos ossos há uns 15 anos atrás em cima das arribas e em baixo junto ao mar. Mas os meus achados aconteceram principalmente no concelho de Torres Vedras. Encontrei bastante na Praia da Corva, Porto Novo, Santa Rita e Mexilhoeira. Há depois uma faixa da arriba que vai até às Amoeiras em que não se encontra praticamente nada. A partir das Amoeiras até à Assenta voltamos a encontrar. A zona de Cambelas é muito boa em tartarugas e vestígios de peixes, mas o mais abundante serão os dinossauros, tanto nos terrenos como nas arribas.

E como foi desenvolvendo o seu interesse pelos achados paleontológicos?

Fui vendo programas de televisão, lia muito, pois tenho muitos livros sobre fósseis, e minérios e não só: também sobre paleontologia, arqueologia, anatomia, geologia e astronomia. Fui-me entusiasmando a encontrar cada vez mais coisas e parafraseando um paleontólogo inglês, ele diz: "além do mais, o caçador de fósseis, não mata, ressuscita…". Tem sido esse o meu objetivo: ressuscitar.

São já 27 anos de procura, 11.466 horas, 1.432 dias a 8 horas por dia, 4.293 kms a pé, 85.860 kms de carro.

Já encontrei 2.041 dentes de peixes, crocodilos, dinossauros, répteis voadores, mamíferos e de um tubarão. 1.910 pegadas de dinossauros carnívoros e herbívoros, tartarugas e repteis voadores e 1.760 vertebras de vários animais extintos. E milhares de ossos de vários tamanhos e feitios. Tudo isto em 698 sítios. E tive sempre o cuidado de juntar aos achados uma etiqueta a mencionar o sítio para ser mais fácil a sua localização.

Há algumas peripécias de que se recorde ao longo destas décadas de procura de fósseis?

Lembro me de em 99, no dia em que o Torreense ganhou ao Porto no Estádio das Antas por 1-0 para a Taça de Portugal, ter encontrado em Porto de Barcas, caído das arribas, o fóssil que foi dado a conhecer pela Sociedade de História Natural recentemente e que saiu numa revista francesa de ciência. O bloco pesava uns cinquenta quilos, e com um cabaz de pescadores e com muito esforço trouxemo-lo pela arriba acima. Quando chegamos ao carro e ouvimos na rádio o resultado do jogo pensávamos que era partida de Carnaval, era terça-feira de carnaval…

Uma outra vez em Cambelas podia ter acontecido o pior: ao puxar pela arriba acima um caixote de madeira com cordas ligadas ao carro, uma vértebra grande soltou-se e passou a um palmo da cara do meu colega. Em contrapartida já parti um dente ao cair, tenho unhas dos dedos das mãos negras, e já tive canelas esfoladas e algumas quedas nas rochas e arribas. As arribas são, aliás, muito perigosas na Praia Azul, caiem de lá blocos enormes de vez em quando. Na zona da Serra do Bouro, a norte da Foz do Arelho, as arribas também são muito perigosas e muito difíceis de caminhar.

A ciência tem que ser mais divulgada nos meios mais simples, não ser só para os cientistas

Desde a Foz do rio Sizandro até à praia da Fraga, a norte de S. Martinho do Porto, conhecemos todos os carris de pescadores, toda a beleza das nossas arribas e o silêncio que nelas se encontra, onde apenas se ouve o mar quando está agitado, as raposas no silêncio e as aves no céu.

Já quando foi feita a escavação na Praia Azul havia pessoas com setenta e poucos anos a dizerem que nunca tinham visto nenhum animal por ali. A propósito disso, alguém disse mesmo que no inverno tinham dado à costa dois burros mortos… (risos)

Em Porto Dinheiro, em 1987, outro exemplo de ignorância: ouvi até alguém perguntar onde estava o bicho, pois se fosse preciso trazia palha para o alimentar… (risos)

O seu trabalho tem tido divulgação na comunicação social?

Sim, já cá esteve a National Geographic, aí há uns dez anos, e a partir daí a RTP, a SIC, o Expresso, o Correio da Manhã, o Público e revistas especializadas, para além dos jornais locais….

Que importância atribui a este seu trabalho?

Para a ciência é bom, claro, embora haja muita gente que não acredite nestas coisas. Eu estava longe de imaginar que um dia o meu trabalho fosse conhecido. Acho que tenho contribuído um pouco para se saber mais sobre uma página do livro da vida, sendo que desse livro faltam muitas páginas, mas esta é uma delas. E através destes trabalhos começamos a saber tanta coisa que ficamos entusiasmados. A terra e a vida são uma coisa impressionante…

E, de resto, é um grande interessado pela temática do cosmos, até tem um telescópio para observar as estrelas…

Sim, até sou capaz de ler mais livros sobre astronomia do que sobre dinossauros.

A natureza tem coisas lindas, mas também tem coisas que são más, como alguns fenómenos naturais destruidores. Como tudo na vida há o bom e o mau…

 

Como surgiu a oportunidade de entregar a sua coleção Município?

Foi através da Sociedade de História Natural e do Bruno Silva. Comecei a ver que isto não podia estar fechado, o sol é para se ver, se a coleção ficasse fechada a sete chaves nunca seria conhecida…Também tive contactos com o Museu de História Natural de Lisboa, mas acabei por entregar a coleção à Sociedade de História Natural e à Câmara de Torres Vedras. E continuo a trabalhar com eles, aliás, tudo o que encontro continuo a doar. A ciência tem de ser divulgada, porque se ficar escondida perde-se. Há pessoas que me dizem para ficar com as melhores peças, mas eu não concordo, isto é para se ver, não é para estar escondido. A ciência tem que ser mais divulgada nos meios mais simples, não ser só para os cientistas.

Acha que é importante o trabalho que a Câmara Municipal e a Sociedade de História Natural estão a realizar na área da paleontologia?

Sim, eu dou realmente os parabéns à Câmara e à Associação Leonel Trindade pelo esforço que têm feito nesta área e estou convencido de que daqui a mais alguns anos vamos ter um museu paleontológico bom em Torres porque temos realmente muitas peças, muito material. E ainda muitos sítios por escavar e também muitos bens paleontológicos e colaboradores na Sociedade de História Natural.

Como foi o seu percurso de vida à margem da paleontologia?

Bom, nasci e vivi quase sempre nos Casalinhos de Alfaiata, tendo na juventude jogado futebol no Torreense e no Casalinhense. Entretanto fui para a tropa e depois colocado em Luanda durante a guerra colonial. Como tinha o segundo ano do curso industrial consegui ficar como escriturário na Força Aérea, o que me permitiu não ir para cenários de combate. Por isso é que digo a muita gente que o estudo é bom, no meu caso porque evitei a guerra. Quando vim de Angola montei uma oficina de carpintaria e passei a minha vida nesse ofício. Os fosseis eram um escape que tinha ao domingo de manhã para aliviar a pressão da semana porque na altura o tempo era pouco. Foram muitos anos de trabalho à frente de uma oficina com poucos trabalhadores e acabei por ter problemas de saúde relacionados com a coluna, o que levou a reformar-me há pouco tempo. Atualmente também me dedico a fazer pequenas peças em madeira ou artesanato simples… Pois sempre gostei de trabalhar em madeira. Além de haver um ditado que diz: a arte de carpinteiro dá muito trabalho e pouco dinheiro…

Como tem visto a evolução do concelho?

Acho que tem evoluído bastante. Lembro-me que quando era miúdo não havia estradas alcatroadas, e muito menos pavilhões gimnodesportivos ou campos de futebol com certas condições como hoje existem. Santa Cruz também está muito bem ornamentada, já se vê muitos surfistas por lá, as praias da nossa costa estão bonitas... Nós queremos sempre mais, mas já se sabe que nesta fase tão complicada em que falta dinheiros, é difícil. E mesmo as condições de vida das pessoas melhoraram bastante. Sabe-se que há pessoas com dificuldades, mas não se compara com os tempos antigos em que alguns andavam descalços…

Apesar dos atuais problemas financeiros do país considera importante investir na educação e na ciência?

Sim, a ciência está um bocadinho esquecida. Eu vejo que se podia fazer mais, mas como já disse, atualmente os dinheiros também não são muitos. Mas esses investimentos também dependem muito de quem está à frente dos assuntos O primeiro presidente dos Estados Unidos disse: não há nada que mais mereça o nosso apoio do que a literatura e a ciência, pois onde haja estas duas vertentes o respetivo país é mais desenvolvido. Já Ronald Reagan, também presidente desse país ainda há poucas décadas disse: porque havemos de subsidiar a curiosidade intelectual?

Que imagem tem do trabalho da Câmara Municipal nessas áreas e não só?

Acho que tem feito um esforço importante na área da cultura, que é a área que mais me diz respeito, e também na do desporto, em que tem feito coisas impressionantes. Nestes concelhos aqui perto não deve haver tantos campos relvados como aqui. Só espero é que haja bons diretores nas localidades para manter aquilo que a Câmara tem feito. Porque é realmente uma coisa engraçada… Quem jogou à bola num campo cheio de seixos como eu nos Casalinhos e agora vê isto, não tem comparação. No tempo em que joguei à bola só tinha experimentado relvados nos estádios da Luz e de Alvalade e no Estádio Nacional, quando fui convocado para um jogo de juniores de todo o país, antes de uma final da Taça de Portugal entre o Porto e o Setúbal. Os tempos agora são completamente diferentes, não há comparação…

Última atualização: 13.11.2014 - 17:00 horas
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