Torres Vedras

Susana Félix

01.03.2018

Foi cedo que saiu do seu “lugar encantado” em busca daquilo que mais gosta de fazer: a música. Alcançando uma carreira de sucesso, havia de voltar a Torres Vedras, onde nasceu, e onde tudo começou com uma festa de Natal para a terceira idade. Nesta edição estamos à conversa com Susana Félix.

 

Depois de alguns anos fora “de casa”, voltaste há dois anos para Torres Vedras. Como é que foi regressar?

É uma experiência e tanto, voltar a casa, aos sítios onde tenho grandes memórias. Foi uma escolha necessária para mim e principalmente para um dado novo que existia na minha vida nessa altura, que foi o nascimento da minha filha. Achei que Torres Vedras seria um bom sítio para ela crescer e para eu poder educá-la. Não queria que ela vivesse o alvoroço e o reboliço de Lisboa, onde vivi quase 20 anos antes de voltar.

 

Na altura atuaste na final do Festival das Vindimas, que encerrou a programação das Festas da Cidade. Qual foi a sensação de voltar a “jogar em casa”?

[risos] Eu não me sinto muito à vontade a “jogar em casa”. São muitas caras conhecidas, muitas memórias… É encarar uma plateia em que conheço praticamente toda a gente. Para mim não é fácil, não é confortável. Fico sempre muito mais nervosa quando tenho alguém conhecido na plateia, do que quando vou para o norte ou o sul do país e em que não conheço ninguém. É mais fácil ser só a cantora ou compositora em que me tornei, e não a miúda que toda a gente viu crescer. Acho o peso da responsabilidade maior. Mas foi muito bom. Já não tocava em Torres Vedras há muito tempo e acabou por tornar-se uma experiência muito boa. Foi um concerto que gostei muito de fazer. Lembro-me de termos preparado um alinhamento especial, muito à imagem do que eu me lembrava que era o Festival das Vindimas, e acho que foi um bom momento.

 

Indo do presente para o teu início de carreira, como é que tudo começou?

A primeira vez que eu cantei em palco tinha 10 anos, numa festa dos avós que aconteceu na Física de Torres Vedras, organizada pela Dra. Lucilina. Na altura eu estudava música na Física e desafiaram-me a cantar uma canção ou duas. E lembro-me de estar nervosa, sem saber bem o que ia acontecer e com medo até de me esquecer da letra. Foi muito emocionante. Aos 11 anos cantei fado pela primeira vez aqui, precisamente, numa noite de fados que o Grémio fazia regularmente. Penso que ainda faz… Passado um ano acabei por ir ao Coliseu dos Recreios, também desafiada por um dos elementos do Grémio, o Carlos Timóteo. E quando dei por mim estava no Coliseu, num concurso de fado que acabei por ganhar. […] Foram coisas que foram acontecendo naturalmente. Porque eu tinha vontade, porque os meus pais permitiram, e eu fui integrando alguns grupos que existiam na altura, onde se cantava, representava e se faziam algumas “teatrices”. Depois, a decisão de tornar a música a minha profissão foi muito mais tardia, por volta dos 20 [anos].

Acho que onde eu aprendi a ser artista, cantora, foi aqui no Grémio. É talvez a sala mais importante para mim. Foi aqui que aprendi muita coisa. A respeitar o público, os técnicos… Percebi que o espetáculo é um todo e que todos temos de trabalhar para o mesmo, que o que interessa é fazer um bom espetáculo e não bons números individuais, que a luz e o som são importantes. Foi aqui que aprendi que eram necessárias muitas horas de ensaios. E onde aprendi que antes de se ser profissional, tem de se ser amador, no verdadeiro sentido da palavra. Nós temos de amar verdadeiramente estar em palco e fazer esta coisa que se chama arte e que é uma grande responsabilidade.

 

Voltando um bocadinho mais atrás, à vitória da Grande Noite do Fado, onde interpretaste “Maria da Cruz”. Daquilo que te recordas, como é que foi tão nova, com 12 anos, interpretares este tema de Amália Rodrigues?

Sempre ouvi a minha mãe cantar fado em casa, e eu e a minha irmã imitávamos. Foi assim que comecei a apanhar aqueles trejeitos do fado. Comecei a brincar com o fado. Por muita maturidade que uma criança possa ter, nunca é uma fadista nessa altura. Quando cheguei ao Coliseu dos Recreios e percebi que aquilo era uma coisa a sério, o que eu apanhei foi um grande susto [risos]. Porque lembro-me perfeitamente de ter chegado ao Coliseu, ter percebido que a plateia eram os bairros populares, os entendidos no fado, e todas as pessoas que estavam no palco eram fadistas mesmo a sério. Hesitei um bocadinho em cantar nessa noite, mas fui ficando, acabei por cantar e acabou por correr bem.

Mas foi uma experiência marcante. Eu tinha 12 anos, nunca tinha estado num palco daquele tamanho. Lembro-me de ter começado a cantar ao microfone, de ter sentido o som das colunas de retorno e de me ter assustado porque aquilo tocava muito alto [risos]. Foi uma experiência incrível. Claro que me marcou, mas não foi decisivo. Nunca ninguém me disse, depois disso, que o meu futuro iria passar pela música. E ainda bem que não me disseram, que me deram a liberdade de viver outras coisas e de ter continuado aqui no Grémio, que isso é muito importante. Ainda bem que me deixaram crescer como artista de uma forma saudável e nunca me puseram um peso ou um rótulo de grande profissional, grande fadista ou grande cantora. Aqui continuei a ser a Susi e isso foi muito importante para mim.

 

Uma vez, em conversa, disseste que as coisas sucederam-se muito “naturalmente”. Até porque ainda antes de lançares o teu primeiro álbum, fizeste coisas bastante diferentes, desde musicais a filmes da “Disney”. Como é que isto tudo aconteceu?

Por volta dos 20 anos, talvez um bocadinho antes, fui para Lisboa fazer um programa de televisão de novos talentos. Não fiquei nos primeiros lugares, só que comecei a gravar coros num estúdio profissional de gravação. […] Esse foi o meu primeiro trabalho. E entretanto ia fazendo castings, ia tentando fazer peças de teatro. Foi assim que comecei a trabalhar com o La Féria e que entretanto comecei a fazer concertos com outros cantores, como a Mafalda Veiga, o Luís Represas, o João Pedro Pais, e gravei em estúdio com muitos mais. As coisas foram acontecendo naturalmente. Entretanto fiz um casting para a “Walt Disney”, porque estavam à procura da voz da “Pocahontas”. Isto, como disseste, antes de gravar o meu primeiro disco. Eu fiz centenas de castings e não fiquei em quase nenhum [risos], mas nesse fiquei. E lá fiz a voz da Pocahontas, que foi uma coisa extremamente importante para mim. Fazer parte do universo da “Disney” era, e continua a ser, um sonho tornado realidade.

 

Foi um desafio, esta entrada no mundo da “Disney”?

Foi um trabalho muito exigente, mesmo. Porque na altura não existia um núcleo da “Disney” em Portugal, eram os americanos que vinham fazer as dobragens, com um nível de exigência extremo. […] E só tinham feito um primeiro filme [em Portugal], que tinha sido o “Rei Leão” e que tinha corrido bem. Mas a “Pocahontas” era um tira-teimas, aquilo tinha de correr bem. E a dobragem acabou por ser considerada das melhores do mundo. Por acaso é um orgulho que eu tenho. [risos]

 

Seguiram-se, entretanto, “Hércules” e “O Rei Leão II: O Reino de Simba”.

Mais tarde, sim. O “Hércules” anda não tinha gravado o primeiro disco, o “Rei Leão II” já tinha. Isto para dizer que tudo foi um processo, não gravei um primeiro disco assim “do nada”. Nem eu estava preparada para gravar um disco só por gravar coros ou fazer trabalhos com outras pessoas. Fazer um disco em nome próprio é outra coisa. Só me senti preparada para gravar um disco em nome próprio quando comecei a compor.

 

“Um Pouco Mais” foi, então, o teu primeiro álbum, que saiu em 1999. Este álbum foi “um pouco mais” de quê neste início de carreira?

Considerei este primeiro disco um pouco mais de qualquer coisa que já tinha acontecido. Lá está, tudo é um caminho. Não considerei o primeiro disco como o início de nada, porque tudo foi uma experiência contínua… Daí o nome do álbum. Porque eu comecei a compor e essa era a grande novidade. Para além de eu estar à frente e não estar nos coros. Foi um passo difícil de dar. Porque eu já fazia parte da música, já sabia o que era estar na música, como produzir um disco, ou pelo menos acompanhar esse processo. […] De repente, tive de abandonar todo esse percurso e tudo o que já tinha construído, porque não podia continuar a fazer coros, com um disco a solo. Foi uma decisão complicada, daí tardia, porque eu só gravei o meu primeiro disco com 24 [anos]. Mas foi uma decisão consciente do risco que estava a abraçar. Tinha vontade de fazer as minhas canções, de aprofundar a minha essência como cantora e compositora. Toda a variedade de trabalhos que eu tinha feito até ali serviram para perceber qual era o meu caminho, o meu registo vocal, como é que eu queria que as coisas soassem… Eu não sou instrumentista, mas tinha ideias muito concretas do que queria que fossem os arranjos das canções. E essa foi a condição: vou fazer um disco, então vou fazê-lo à minha maneira e à minha medida.

 

Canções essas em que, além do sucesso de “Mais Olhos Que Barriga”, também encontramos “Um Lugar Encantado”. Há muita gente que associa esta música a Santa Cruz…

Associam e bem. [risos] A letra dessa música foi escrita pela Mafalda Veiga. Tornámo-nos amigas e ela sabia perfeitamente do encanto que eu sempre tive pela praia de Santa Cruz. Durante o processo de composição do meu primeiro disco, chegou um dia ao pé de mim com uma folha de papel e disse: “tenho aqui uma coisa para ti, fala de um sítio muito especial.” E sem dúvida é uma das pérolas que eu tenho nesse disco. […]

 

Portanto Santa Cruz é mesmo o teu lugar encantado?

É, sim.

 

Por falar em lugares encantados, e agora que estamos no “rescaldo” do Carnaval de Torres Vedras, como é que foi viver este Carnaval em que o “Samba da Matrafona” se tornou num autêntico hino?

Ainda não consegui digerir... Há dois anos voltei a sentir esta energia da cidade começar a preparar-se para o Carnaval. […] Eu sou completamente apaixonada pelo Carnaval e fiquei muito orgulhosa pela forma como as coisas evoluíram. Mas senti, de formação profissional, que era uma pena não haver pelo menos uma música que fosse portuguesa e característica do nosso Carnaval. Ainda por cima é o Carnaval mais português de Portugal. Eu gosto muito de música brasileira, […] mas era uma pena não haver nada assim característico. E essa ideia começou a chatear-me, ao ponto de eu falar nela. E, no fundo, foi assim que aconteceu.

Mas foi um grande desafio fazer esta canção. Porque eu nunca tinha feito nenhum samba, nem nunca me tinha passado pela cabeça. Mas achei que se não fosse uma música de raiz brasileira, ia estar contra a tradição do Carnaval de Torres. E a tradição, até aqui, tem sido ouvir música brasileira. Só que tinha de ser uma letra muito torriense, muito “despreconceituosa” e descritiva do que é o carnaval para nós torrienses. Agora, para mim era impensável que a música ganhasse a dimensão que ganhou. Eu achei que era uma boa ideia [risos] mas daí aos torrienses se unirem da forma como se uniram com ela, muito sinceramente, não imaginei.

 

Não estavas à espera deste tipo de reação?

Não estava e é uma felicidade enorme para mim. Mas isso é a capacidade extraordinária que a música, em si, tem, que é a de reunir as pessoas.

 

Para isso contaste com convidados muito especiais, reuniste o Zeca Pagodinho e o Emicida. Como é que foi trabalhar com estes artistas brasileiros?

Antes disso deixa-me dizer-te que a música foi composta em parceria com o João Cabrita, que é o meu comparsa de músicas já há algum tempo. Eu tinha uma melodia e a partir daí toda a estrutura harmónica foi surgindo, e ele foi inclusive o arranjador do samba. Eu tinha uma ideia muito concreta: queria incluir o único registo sonoro que existe do Carnaval de Torres, que são os tambores. Seria sempre um samba diferente [risos] e mesmo assim conseguimos cozinhar isso, que para mim era muito importante não deixar de fora aquilo a que estamos habituados a sentir no Carnaval. E o Carnaval também não é só samba, também temos essa vertente muito portuguesa. Entretanto queria fazer um samba “a sério” [risos] e queria muito a participação de um cantor que tivesse “peso” no samba. A ideia foi cozinhada não só por mim mas também pelo núcleo da Promotorres, e aí surgiu o Zeca Pagodinho. Depois tive a felicidade de ele aceitar o convite, mesmo à distância… Porque eu, o Zeca e o Emicida nunca nos encontrámos. Tivemos grandes conversas por e-mail [risos] e estávamos em três estúdios diferentes: eu em Lisboa, o Zeca no Rio de Janeiro e o Emicida em São Paulo. O Emicida surge porque eu também queria […] misturar isto de forma contemporânea. Daí eu ter pensado num rapper. E foi a melhor escolha que poderia ter acontecido. Se tivermos em conta que foi ele que escreveu a parte que ele diz… É incrível como ele consegue descrever a matrafona daquela forma gráfica tão bonita e eficaz.

 

Depois das matrafonas, já tens inspiração para o próximo “samba-torriense”?

Eu? [risos] Não estou a pensar fazer mais nenhum “samba-torriense”. Quando esta ideia surgiu pensei que era bom fazer esta tradição. Eu gostaria de fazer a primeira música, mas isso não significa que serei eu a fazer as próximas. Aliás, eu gostava muito que fossem outros músicos torrienses a fazer as próximas canções, sejam elas sambas ou não. […] Há muitos músicos neste concelho, muita gente talentosa que vive aqui. Só a quantidade de bandas filarmónicas que existe… Não sei se as pessoas têm ideia da quantidade de gente que pode e deve encarar este “Samba da Matrafona” como o início de qualquer coisa.

 

Esta música obrigou-te a fazer uma pausa na preparação do teu novo álbum, que surge 7 anos depois do teu último disco. Como é que olhas para este interregno?

Foi um interregno absolutamente necessário. Tive, durante muito tempo, um ritmo que para mim não estava a ser bom de acompanhar. Tinha mesmo de fazer um balanço da situação e de fazer o caminho de volta, como fiz.

 

E o que podemos esperar deste novo trabalho?

É um disco novo, são canções novas. Não posso dizer que é uma coisa extraordinariamente diferente, porque continuo a compor e a escrever. […] São canções novas mas a minha essência é a mesma. Gosto sempre de arriscar um bocadinho e de mudar algumas coisas, mas não posso mudar o que sou. Nem quero. Estava a fazer este disco quando resolvi fazer este desafio do “Samba da Matrafona”. Este disco não está acabado, acho que toda esta experiência também o vai influenciar. Só quando os discos estão acabados é que eu consigo perceber bem o que aconteceu, porque eles não são mais do que o registo daqueles momentos em que estamos a fazê-los.

 

Além destes projetos tens ainda uma faceta um pouco mais desconhecida do grande público, que é seres produtora.

Sim, a maior parte das pessoas conhece-me como cantora. Algumas, como atriz. Mas durante estes anos todos de carreira trabalhei muito nos bastidores. Tive, durante 15 anos, um estúdio de gravação e trabalhei também em produção de teatro. Foi muito importante perceber o processo de como as coisas acontecem. Lá está, é um trabalho invisível mas que me serve de muito.

Este “Samba da Matrafona” acaba por acontecer também graças a parcerias muito importantes que tenho, e desse conhecimento de como produzir as coisas e de tentar fazer uma produção eficiente com um objetivo próprio e concreto. Há pouco disse que não tinha como objetivo fazer a próxima música do Carnaval de Torres Vedras, mas gostaria muito de poder estar no projeto como produtora. Para quem quiser fazer a próxima música ter a garantia de ter a mesma produção que teve o “Samba da Matrafona”. Porque são músicas que vão competir com canções muito fortes. Tive de fazer uma música que tinha de sobreviver entre o Netinho e a Banda Eva. [risos] […]

Também gostava muito que aparecessem canções nas escolas, que os professores de português começassem a trabalhar em conjunto com os de música, e que houvesse alguma sensibilização sobre o que é fazer uma canção. Quanto mais cedo as pessoas tiverem a noção de que as canções não nascem na internet, mais garantias temos de que a música em português e, concretamente, a música no Carnaval de Torres tem um caminho a seguir. E que pode chegar muito longe, durante muitas gerações.

 

Em relação ao panorama da música nacional, achas que mudou alguma coisa depois de termos ganho o Festival da Eurovisão no ano passado?

Acho que a Eurovisão, para todos os músicos portugueses, é uma lição boa. Ou talvez mais para os outros, porque é um reconhecimento. Nós, portugueses, temos muita dificuldade em gostar daquilo que é nosso e a música também sofre desse problema. É pena que assim seja mas é bom perceber que as pessoas acordam e pensam “nós realmente somos bons no que fazemos.” Temos muitos bons músicos, talentosíssimos, e isso é reconhecidíssimo lá fora. Pode não ter a mesma visibilidade que a Eurovisão tem. Mas nós, músicos portugueses, também sofremos desse preconceito. Gostamos de fazer as coisas mas com pouco alarido, porque vamos ser sempre muito criticados. E somos. [risos]

 

Apesar disto que falas, as tuas músicas andam há muitos anos na boca dos portugueses. Para terminar perguntava-te, se tivesses de escolher uma música que marcou a tua vida, qual é que escolherias?

[Pensativa] É difícil… Mas acho que, pela razão de ter sido a primeira canção que escrevi sozinha, talvez o “Flutuo”. Acho que foi um passo muito importante e não é uma música simples, nem uma letra nada simples. E pensei: “então vou complicar isto, porque se alguém perceber, a partir daqui posso escrever tudo.”

 

Queres acrescentar alguma coisa a esta nossa conversa?

Quero agradecer muito a todos os torrienses, pela forma como cantaram este “Samba da Matrafona” e a forma como o receberam. Foi uma música feita com muito amor, muito amor mesmo. E quando o amor vem todo de volta, às vezes até é difícil de perceber e receber.

Última atualização: 10.05.2018 - 16:47 horas
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