Torres Vedras

Pedro Belchior

01.09.2014

Pedro Belchior foi durante décadas investigador no atual Instituto Nacional de Investigação Agrária de Dois Portos, um equipamento situado no concelho, mas cuja atividade, na sua opinião, é relativamente desconhecida da população local. Em altura de pré--vindimas, Pedro Belchior esteve à conversa com a [Torres Vedras] no espaço dessa estrutura de investigação, onde abordou vários assuntos como o trabalho efetuado pela mesma, o panorama local e nacional da viticultura, a investigação científica em Portugal, o seu percurso pessoal e profissional e a evolução dos tempos…

Começava por lhe pedir para falar sobre o seu percurso de vida…

Bom, sou da Ribeira Maria Afonso, a terra mais bonita do mundo… Fiz a minha escola na Bulegueira, e fui posteriormente estudar para Lisboa onde me formei em Engenharia Agronómica. No final do curso fiz o meu estágio, aqui, no atual centro de investigação em viticultura e enologia de Dois Portos, ao que se seguiu a tropa. Terminada, comecei a trabalhar no local onde estagiara, tendo feito toda a minha carreira aqui, a partir de 1969, até me ter reformado. Fui inclusivamente diretor e presidente do instituto durante dois anos. Paralelamente, vivi em Torres Vedras…

Que trabalhos mais relevantes realizou ao longo da sua carreira?

Quando comecei a trabalhar, o meu diretor disse que tínhamos de ir estudar as aguardentes da Lourinhã, sendo que o vinho desse concelho era inclusivamente utilizado, após destilação, para o vinho do Porto. Fiz um estágio em França, durante dois meses, em Cognac, e verifiquei que a Lourinhã tinha efetivamente caraterísticas para a produção de aguardentes de qualidade. Um dos meus trabalhos passou pela investigação dos envelhecimentos, em que não tínhamos qualquer tradição. Estudamos o envelhecimento da aguardente em madeira de castanheiro e apresentamos estudos no estrangeiro sobre essa temática, comparando o carvalho com o castanheiro. Estudamos inclusivamente sete madeiras.

Antes disso, no início dos estudos, começamos por analisar as destilações nas aguardentes em envelhecimento e estudamos as consequências da queima interna das madeiras na produção da aguardente. Trabalhei também na área das provas organoléticas de vinhos, estudando, por exemplo, as condicionantes para um provador poder executar corretamente a sua tarefa. A ficha de prova de aguardentes que hoje se utiliza é o resultado de um projeto que começou em 95 quando se formou uma câmara de prova, a qual elaborou um modelo de ficha. A minha tese de final de curso já tinha versado essa matéria e prossegui os meus estudos nessa área bastante exigente. E essa exigência era visível na quantidade de desistências que existiam nos cursos. No último curso de aguardentes que fiz, na década de 90, começaram 40 e acabaram 11. Entretanto, realizei também provas equivalentes a douramento na área das madeiras, o que era um requisito na minha carreira. Passei na altura a investigador coordenador, o que equivale a professor auxiliar.

Na sua opinião é uma mais valia para o concelho ter uma estrutura de investigação como o instituto nacional de investigação agrária?

É um facto. Embora as pessoas do concelho nunca tenham percebido bem a importância desta estrutura, que além de ser uma fonte de emprego, é também uma fonte de conhecimento, não obstante os estudos que realize tenham um âmbito nacional.

Eu acho  que ainda percebemos  muito pouco da natureza 

Ao longo dos anos em que trabalhei aqui fui vendo esta estação a desenvolver-se. Aliás, este equipamento teve várias funções. Chegou a ser em meados do século XX uma estação de produção de fruticultura e só depois passou para a área da viticultura. Foi um espaço onde houve sempre investigação, mais ou menos, conforme as épocas, mas esteve sempre ligado a um esforço para o aumento de conhecimento. Foi no final da década de 60, enquanto Centro Nacional de Estudos Vitivinícolas, que este equipamento se fixou na investigação no setor vitivinícola.

Infelizmente alguns setores de investigação deste instituto estão em vias de desaparecer. A falta de apoio financeiro às atividades desenvolvidas, bem como a não substituição/renovação atempada de funcionários entretanto aposentados, são as principais razões.

Apesar destas dificuldades, continuam a ser desenvolvidos aqui trabalhos nas áreas da vinha e do vinho reconhecidos nacional e internacionalmente, nomeadamente ao nível da preservação de recursos genéticos da videira e de microrganismos de interesse enológico, da seleção, condução e rega da videira, da segurança alimentar e saúde, da microbiologia enológica, da biologia molecular, dos aromas, dos polifenóis, das aguardentes, da análise automatizada, da análise mineral e da análise sensorial. Atualmente há um certo desconsolo das pessoas da minha geração que trabalharam aqui, que construímos este instituto, que o promovemos no estrangeiro, onde era uma referência, e vemo-lo agora a perder valências…

Acha então que neste momento existe um desinvestimento na investigação na área dos vinhos?

Sim. Acho que é uma perda nacional, porque o desinvestimento na investigação não é só na área da vinha e do vinho, é geral, é uma perda total para o país, porque a investigação não é ser mais, é dever saber mais e transmitir isso aos outros, à cadeia de conhecimento, porque é isso que faz depois desenvolver o país, é normal, é lógico. O desinvestimento na investigação é uma coisa impensável…

o desinvestimento na investigação não é só na área da vinha e do vinho, é geral, é uma perda total para o país

No Ministério da Agricultura tem havido, efetivamente, muitas vozes contra a investigação. Porque não se percebe que a investigação é um ciclo, faz parte do conhecimento. O conhecimento às vezes até se transmite de uma forma que não é muito pensada, mas é importante que exista.

Por essa lacuna, muitas vezes nos encontros internacionais podemos não saber falar, como país, de certas matérias. Mas isso não é o mais importante. O mais importante é poder-se contribuir para o progresso dos nossos vinhos...

Uma outra das questões porque nos temos batido é a preservação da qualidade dos produtos e assegurar a mesma junto dos consumidores. Até porque estes normalmente não têm conhecimentos específicos nessas áreas da qualidade...

Houve sempre uma ligação entre a investigação realizada no instituto e o tecido empresarial…

Sim, sim. E nunca separamos a parte da viticultura da enologia. Houve efetivamente produtores do concelho que se socorreram da estação para plantar novas vinhas…

Tem notado uma correlação entre o desenvolvimento da investigação e o do setor vitivinícola?

Efetivamente houve um grande salto na enologia, aí há uns 10, 20 anos, o que se refletiu na qualidade dos nossos vinhos. Hoje temos uma gama de vinhos enorme e excelente, os quais se batem com todos os vinhos do mundo. E muitos dos técnicos responsáveis por essa situação estagiaram connosco e fizeram mestrado e doutoramento a partir daqui.

Por outro lado, houve também uma evolução técnica muito grande...

Houve, inclusivamente em aparelhagem de investigação. Também lamento esse aspeto, porque há setores de investigação que estão semi mortos e possuem a aparelhagem que seria necessária para prosseguir a sua atividade. Por outro lado, em termos de publicações o instituto está muito bem apetrechado.

Por outro lado ainda, tem havido situações menos corretas na produção vitivinícola…

Sim. Por exemplo, há uns anos foi moda utilizar muito a madeira que vinha de França. Acho que isso aconteceu em demasia, não valia apena, mas as casas tinham de dar resposta aos seus mercados.

o vinho é como o Homem, todos somos diferentes, graças a Deus

Há alguns anos houve também algum exagero na utilização de químicos. Acha que é uma situação que está ultrapassada?

A questão dos químicos prende-se muito com os fungos. E ai, realmente, não se pode deixar chegar ao cacho, senão é um sarilho. Esta zona é húmida, este ano tem sido húmido, mas curiosamente não tem sido problema. Eu acho que ainda percebemos muito pouco da natureza… Era uma coisa onde se deveria investir, perceber melhor a natureza em certas questões, que são importantes para nós, homens. Na minha opinião, tem de haver sempre uma utilização mínima de químicos por causa das bactérias, que se adaptam ao que for preciso. Há, de resto, químicos que não vale a pena utilizar em doses elevadas como o dióxido de enxofre.

Acha que o consumo de vinho devia ser incentivado?

O consumo de vinho em doses moderadas é de facto ótimo. A própria aguardente tem vantagens para a saúde, em termos do coração e da digestão. Não beber vinho é uma pena, é não se poder usufruir de uma das coisas da natureza que é ótima, quanto a mim… Mas essa é uma questão muito perigosa, porque as pessoas vão logo dizer que se vai incentivar o consumo de álcool, que é uma droga semi leve…

Com vê a evolução da viticultura no concelho?

Antigamente o concelho era mais conhecido pela quantidade do que pela qualidade do seu vinho. Havia uma tecnologia e utilização de castas que levavam a vinhos muito ásperos. Os consumidores começaram a perceber que gostavam de vinhos mais amaciados, não tão ácidos, com muito tanino. Era preciso agir, e foi isso que aconteceu. Os vinhos passaram a não ser tão ásperos e a ter a qualidade que era imposta. Se envelhecessem até chegavam a vinhos excecionais, mas era tão caro que não compensava. E a tecnologia de plantação da própria vinha também mudou...

As castas utilizadas no concelho são neste momento mais adequadas?

Eu penso que sim. No passado houve a introdução de algumas castas francesas, em que não vejo vantagem porque temos castas nacionais muito boas, sendo que algumas ainda estão a ser introduzidas porque eram castas fundamentalmente do vinho do Porto e do Dão e que começam agora a aparecer na região, e que se dão bem, dando características diferentes aos nossos vinhos, até porque dão vinhos mais macios e não tão ásperos. Basta ter atenção aos rótulos e ver que os vinhos já são bastante diferentes. De resto, algumas castas francesas imprimem uma caraterística muito forte aos nossos vinhos e isso não vale a pena, é estarmos a habituarmo-nos a essas castas nos nossos vinhos sem necessidade. E o vinho é como o Homem, todos somos diferentes, graças a Deus… O vinho é diferente de região para região devido a certos condicionalismos e ainda bem, é deixa-lo ser…

Há quem seja da opinião que os terrenos da região são mais vocacionados para os vinhos brancos do que para os tintos. Qual é a sua opinião?

Depende. Nas encostas, é vinho tinto tipicamente, porque as castas tintas precisam de sol e calor, o que permite uma melhor maturação. As zonas baixas são talvez mais vocacionadas para os brancos….

Passando para uma área que não é tanto a sua, mas em que poderá ter alguma opinião, perguntava-lhe o que pensa da internacionalização dos vinhos da região e dos nacionais…

O nosso grande problema é o marketing, é uma questão que envolve muito dinheiro, e o marketing neste caso só se aplica a grandes quantidades e não somos um país de grandes quantidades em comparação com outros países, temos é caraterísticas próprias… Digo isto porque também sou produtor…

Também por isso, há outra questão que diz igualmente respeito à comercialização, que se prende com a distribuição dos lucros, em relação à qual gostava de lhe pedir opinião…

É um facto que o vinho quando chega ao consumidor tem um preço que não tem nada a ver com o preço de venda do produtor e este vê-se por vezes um pouco aflito devido a essa situação. Vejo por vezes vinhos com preços escandalosos, mesmo que tenham a sua qualidade, não o nego, mas com preços brutais… Eu estou a falar como produtor amador, não sou profissional, e existem pessoas que sabem melhor dessas questões económicas...

Já que estamos a entrar numa abordagem mais social, gostava de acrescentar que a queda das torres gémeas nos Estados Unidos não foi algo de positivo, como é óbvio, mas foi um grito da Humanidade a dizer que algo não estava bem… E esses gritos continuam a existir, não com tanta espetacularidade, mas continuam a existir coisas muito complicadas hoje em dia, como as guerras… Eu sou cristão, penso que nós temos uma missão a cumprir e há de notar que ao longo da História, quando o Homem se esquece que existe Deus, seja de que religião for, tem problemas…

Como tem visto então a evolução da sociedade ao longo da sua vida?

Tem tido altos e baixos, tem tido coisas boas, depois entra em coisas que não se percebe... Hoje em dia, olha- -se para a informação geral e é muito raro ouvir falar de Deus. Talvez com o atual Papa seja diferente… é um facto. O Papa para mim é um dom de Deus, é um Homem de Deus, que tem caraterísticas muito próprias, e que fala muito da sua experiência, da sua vivência. Ele é uma das pessoas que precisamos de ver na nossa sociedade. Na minha opinião, caminhamos para Deus, de uma forma ou de outra, com altos e baixos, mas acho que no fundo caminhamos para o Bem e isso é que é fundamental.

Aqui há 50 anos, na minha terra, eu lembro-me que as pessoas viviam muito mal e graças a Deus hoje não é tanto assim, principalmente nas aldeias. Felizmente há muitas instituições de ajuda aos mais carenciados, mas os políticos não podem descansar... Eu tenho muita pena dos políticos, porque têm responsabilidades muito grandes… e espero que eles avaliem bem as suas responsabilidades porque são realmente muito grandes… Eu andei perto dos políticos e percebi que a política é uma coisa muito complicada, o poder é corrosivo … E também por isso é importante para o Homem ter uma entidade superior que respeite e a quem tem de prestar contas. Olhe para a Europa, só pensa no dinheiro. O Papa tem inclusivamente dito de forma muito marcada que o Deus Dinheiro não interessa ao Homem. Faz parte, é um meio, mas não é o mais importante…

O que acha que poderia ser melhorado no mundo?

Uma coisa que é fundamental é o respeito pelas pessoas, todas, seja quem for, e que isso seja efetivamente feito, mesmo por quem tem mais…

Última atualização: 14.11.2014 - 12:37 horas
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