Torres Vedras

NBC

01.01.2015

NBC

Timóteo de Deus ou NBC, como é conhecido no mundo artístico,é um músico “torriense”,  como ele próprio se considera (embora o início  da sua vida não esteja ligado ao concelho),  aliás, um dos primeiros "rappers" no país,  que completou recentemente 20 anos de carreira. Um excelente pretexto para a [Torres Vedras] estar à conversa com ele numa entrevista em que fez precisamente um balanço do seu percurso artístico e apontou caminhos para o futuro do mesmo, não deixando de abordar outras temáticas laterais e com igual interesse. O trabalho aliado ao talento inato é, na sua opinião, o segredo do sucesso...

Como entrou no mundo da música?

Foi uma consequência natural de alguém que se queria exprimir, que sempre teve a necessidade de se exprimir de alguma forma. Eu fui uma criança normal, com uma família normal, a qual me conseguiu dar um background musical que era necessário. Cantava no coro da igreja, o meu pai tocava em casa regularmente, a minha mãe também cantava… Depois de ter vindo para Torres Vedras, no 10.º ano, conheci outras pessoas, colegas que também eram músicos e que me impulsionaram para entrar no mundo da música. Também conheci algumas pessoas que trabalhavam na rádio, como o Jorge Leandro, tendo sido através dele que eu e o meu irmão tivemos a possibilidade de fazer algumas pequenas gravações. A partir daí comecei a aprofundar a minha atividade musical até fazer o cross over para Lisboa, para a grande central, onde as coisas aconteciam efetivamente. Estamos a falar em 1992, quando surge uma rádio associada à Antena 1, que é a Antena 3, que dois anos mais tarde criou um festival chamado Oeiras Rap 94, no qual eu e o meu irmão participamos com um grupo chamado Filhos de um Deus Menor, já eu tendo o nome artístico de NBC.

NBC porquê?

NBC tem duas conotações. A primeira tem a ver com um rei bíblico de Israel, Nabucodonosor, pelo qual eu nutri algum sentimento positivo já que era uma pessoa bastante altruísta e que defendia bastante o seu povo, tendo a História deturpado um pouco essa faceta dele.

Mas como em termos artísticos, para a maioria das pessoas, Nabuconosor é um nome estranho, eu peguei em algumas das letras dele e transformei-o em NBC, tendo posteriormente criado o nome de Natural Black Color. Isto mais para um sentido de compreensão geral, porque não seria fácil estar constantemente a explicar a outra origem do nome NBC.

Que balanço faz dos seus 20 anos de carreira?

O balanço é bastante positivo. Teve muitos baixos sim, mas com a certeza de que nesta vida é impossível alcançar o que quer que seja sem trabalharmos para isso. Só com muito trabalho e persistência conseguimos os nossos objetivos. Com um forte envolvimento emocional sempre, claro, não se pode é perder essa chama. Muitas vezes duvidei da capacidade de fazer o que pretendia, mas depois aparecem os astros que também fazem a sua parte. Num dia as coisas podem não estar a correr muito bem, mas há uma porta que fica entreaberta e vou perceber que no meio da escuridão está ali um raio de luz, e acabo por entender que tenho de passar por ali. Aqui não abdico da minha crença cristã, e acredito que foi Deus quem conduziu todo o processo da minha vida.

De que forma?

Simples. Nós viemos de S. Tomé em 1980, tínhamos muito pouco, mas tínhamos esta crença. O meu pai era pastor de uma igreja protestante. Mesmo que não acreditasse efetivamente em Deus há uma base de educação que me foi transmitida através da Bíblia, e que sustentava a minha família, que fez com que determinados valores não pudessem ser esquecidos em momento algum. Os valores dos 10 Mandamento de alguma forma estarão sempre intrínsecos à minha pessoa.

Tenta evangelizar intencionalmente com a sua música?

É curioso que no meu primeiro disco utilizava a segunda pessoa do singular e depois passei a utilizar a primeira. Significa que estou a assumir o que canto. Isso aconteceu a partir do momento em que fiz a versão do “Bem- -Vindo ao Passado” dos GNR.

Há momentos da sua carreira que recorde de forma especial?

Tenho muitos. Um deles aconteceu logo no primeiro dia em que participei no Oeiras Rap 94. Quando fizeram o cartaz puseram as iniciais do meu grupo da altura, Filho de um Deus Menor, e acontece que havia um grupo chamado Filhos de um Deus Maior, que ocorreram ao local do concerto pensando que seriam eles a atuar, o que motivou na altura uma discussão (risos).

Também importante na minha carreira foram as atuações no Rock in Rio, primeiro como convidado dos GNR, depois em nome próprio.

O concerto que dei este verão no Ocean Spirit, em que estiveram 9500 pessoas, também foi marcante.

Outro momento muito marcante aconteceu na Casa da Música, em que toquei com a orquestra do Porto, com a sala principal cheia. A mistura de rap com música sinfónica foi uma experiência muito interessante, mas foi um dia em que tive muito medo. Mas tudo correu bem, gostaram tanto que nesse mesmo dia disseram que poderia marcar um concerto para a data que quisesse escolher.

Essas coisas têm vindo a acontecer na minha vida porque trabalho bastante para que aconteçam.

Por outro lado, o meu percurso não tem sido retilínio. Comecei por fazer o álbum “A Longa Caminhada” com o grupo Filho de um Deus Menor e depois disso senti necessidade de fazer mais do que rap. E é isso que acontece atualmente embora a minha música tenha como base o registo rap. Precisei de dar novas abordagens à leitura musical na qual estou inserido. E para isso era preciso vocalizar de uma outra forma. Foi para esse lado que eu me vocacionei um bocadinho mais e é essa a diferença para com todos os rappers em Portugal.

É um autodidata?

Sim, embora tenha tido algumas aulas. Quero agora ter outras para criar mais. Toco viola, mas preciso de mais, às vezes necessito de tocar algumas teclas, por exemplo. Eu tenho ideias de melodias que me surgem e que precisam de ser logo ajustadas e é por isso que necessito dessa formação.

Como é o seu processo criativo? Levanta-se da cama a meio da noite, tem ideias durante o dia ou as coisas só saem em estúdio?

Tudo isso me acontece. Já me aconteceu várias vezes estar a dormir e acordar. Tenho músicas que escrevi de uma ponta a outra depois de acordar de propósito. Atualmente tenho um livro e uma caneta à beira da cama porque isso pode acontecer. O que sucede muitas vezes é que como os meus escritos surgem em zonas de conforto, como na minha sala ou na minha cozinha, quando vou para estúdio com algumas pessoas tenho dificuldade em que essas informações me saiam de forma natural. E por outro lado lidamos com “dead lines” que temos de cumprir, o que é uma condicionante para o processo criativo.

As suas músicas são um pouco como uma escultura que vai apurando…

É assim mesmo que trabalho, em simbiose com outras pessoas, com quem vamos conciliando opiniões... É como uma cama que balança...

Não me considero um músico profissional, considero-me um músico amador apesar de toda a gente me considerar profissional.

Que influências teve para a sua musicalidade?

Tive muitas. A principal terá sido a música dos anos 80, embora tenha ido buscar coisas anteriores. A música pop foi efetivamente um fenómeno incrível. Há uns tempos estive a ouvir uma música da Tina Turner para perceber a intemporalidade dessas músicas. Aquelas tarolas, aqueles bombos, aquelas nuances que estão ali são coisas feitas minuciosamente. Aquilo não é música de plástico. É algo muito bem feito...

Aliás, a música pop dos nos anos 80, embora um pouco vazia de conteúdo, acabava por ser harmoniosa, refletindo o mundo da altura. Nos anos 90 a música é cada vez mais um espelho de problemas sociais que se foram agravando, aparecendo nesse contexto estilos como o grunge ou mesmo o rap…

Precisamente…

Já chegou a ser músico a tempo inteiro ou a música foi sempre um part-time?

Foi sempre um part-time. Não me considero um músico profissional, considero-me um músico amador apesar de toda a gente me considerar profissional. Mas gostava de ter mais tempo para criar, é um facto. Em certas situações não consigo dar asas à criação, há pensamentos que tenho de guardar por um bocadinho…

E trabalho muito mais do que o “horário” permite. Trabalho das 8 e meia às 6 e meia num local fixo, e só depois é que me desmembro para fazer tudo o resto. Tenho dias a deitar-me às 3, 4, 5 da manhã e a acordar às 6. Tem sido assim desde 94.

Ao longo da sua carreira houve músicas suas que o tivessem marcado de forma especial?

Sim, três ou quatro de que gosto especialmente. Há uma música que gosto muito do primeiro disco, que voltei a ouvir e me fez pensar que ainda estou naquele registo. Chama-se “Dois Caminhos”. Depois, há o “Bem Vindo ao Passado”, que é uma bandeira maior na minha vida. E o “Homem”. Fala das grandes diferenças mundiais que o Homem cria para consigo próprio, como dominador de todas as raças e inclusivamente das mulheres. Se compreendesse que vem da mulher teria um comportamento diferente…Essa música foi mesmo uma epifania total. Dou muito valor a esse tema porque consegui dizer tudo numa música.

Como perspetiva o futuro da sua carreira?

Editei recentemente um single que se chama “Gratia”, que fiz propositadamente para comemorar os meus 20 anos de carreira. Essa música fala de todas as pessoas que estiveram à minha volta durante a mesma, tanto as que me fizeram bem como as que me fizeram menos bem. Esse single será para um disco que vai sair, espero eu, ainda em 2015. Estou a trabalhar no vídeo deste tema e no próximo single. E espero que 2015 seja um ano de algumas reviravoltas importantes.

A que nível?

De conseguir, por exemplo, estar mais tempo ligado à música. E depois ramificar-me um pouco. Talvez voltar a fazer cinema, sendo que já participei em alguns filmes, no “Fados”, um documentário do Carlos Saura, e também no “Do Desassossego”. São filmes que, velhinho, os recordarei, por estarem ligados à cultura do meu país e à língua de Camões, que para mim é uma bandeira. Junto dos meus pares existe alguma discussão por muitos deles cantarem em inglês, e eu tenho de dar a minha explicação de porque não o faço. Digo-lhes que quando me deito efetivamente sonho em português. Temos de constituir um exército de defensores da língua portuguesa…

Eu enervo-me para 10 mil como para 50 mil. O estar nervoso para mim é quase como que um estado de alma.

Como é a experiência de ser figura pública? Passa despercebido, as pessoas conhecem-no?...

Sim, conhecem-me. No hipermercado é constrangedor. Na rua é normal. Já tive situações bastante profundas. Se a música transporta um peso tão grande, é normal que já me tenham surgido pessoas a chorar no ombro, porque a música as transforma de alguma forma. Homens, mulheres, rapazes, raparigas, já o fizeram, porque o meu disco transformou as suas vidas. E isso é mais um sinal de que este é o meu caminho e não posso fugir dele…

Acha que esse rumo já está traçado?

Eu não acredito no acaso. Acredito que as coisas acontecem de facto por uma razão. Eu sei que tive acontecimentos na minha vida que se não tivessem sucedido não seria hoje tão sólido...

Como é tocar para 50 ou 60 mil pessoas como aconteceu consigo no Rock in Rio?

Eu enervo-me para 10 mil como para 50 mil. O estar nervoso para mim é quase como que um estado de alma. É perceber que não posso deixar mal as pessoas que me veem ver. Isso porque também sou público, vejo muitos concertos, de algumas bandas que gosto mais, e de outras para tirar algumas ideias, e das coisas que mais me entristece é ver uma banda a não se esforçar totalmente. Posso morrer em cima de um palco, mas hei de deixar lá tudo. Tem de haver uma ética para quem nos vai ver.

Considera-se um torriense?

Sim, há mais de 20 anos. Tinha 5 anos quando vim para Portugal. Vivi sempre perto de Torres Vedras. Primeiro em Enxara dos Cavaleiros, depois fui para o Sobral de Monte Agraço, até ter vindo estudar para Torres no 9.º ano onde tenho estado até aos dias de hoje. Tive várias oportunidades de ir para Lisboa e nunca quis. Para todo o lado para onde vou o nome Torres Vedras está sempre comigo como que uma bandeira. Aliás, quando toquei pela primeira vez no Rock in Rio foi a primeira coisa que disse, e ainda há pessoas que se lembram disso.

É adepto do Carnaval?

Agora mais. Antes não era tanto, mas isso tem a ver com o meu lado africano. Antes podia ir para a rua em qualquer altura do ano e fazer o que quisesse. Eu vivo o ano todo em consonância com aquilo que sou e não preciso de cinco dias para ser mais efusivo. Mas gosto do Carnaval e principalmente do de Torres Vedras por ser tão português. E espero mesmo que não se perca essa caraterística nas gerações vindouras.

Gostaria de deixar alguma mensagem final?

Volto a sublinhar que nada acontece por acaso. E temos de interiorizar o facto de que quando temos um desejo temos de trabalhar arduamente para que o mesmo se concretize…

Última atualização: 12.05.2015 - 09:51 horas
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