Torres Vedras

Joaquim Ferreira

01.09.2013

Joaquim Ferreira é um neurologista torriense que para além de exercer medicina é também professor universitário e investigador. Recentemente lançou-se num projeto pioneiro no país ao construir com a sua família um Campus Neurológico Sénior na sua terra natal o qual está agora a entrar em funcionamento. Joaquim Ferreira explicou este arrojado projeto, tendo ainda abordado outros temas como o seu percurso pessoal e profissional, o seu ramo profissional específico, o panorama local na área da saúde e a reorganização dos cuidados de saúde em Portugal...

 

Pedia-lhe para falar um pouco do seu percurso pessoal e profissional…

Bom, sou de Torres Vedras, nado e criado, fiz todo o meu percurso até ao 12.º ano aqui, na altura tinha fama de bom aluno, e acabei por entrar em medicina. Para além disso fiz ginástica desportiva de competição na Física, nas equipas do mestre Sammer. No entanto acabei por abandonar a ginástica apostado em entrar no curso medicina. Ser médico tem uma vantagem, permite-nos adiar a decisão do que queremos fazer na vida e até nos dá a opção de nem ver doentes se assim o quisermos. Cruzei-me com o professor Alexandre Castro Caldas e com a professora Cristina Sampaio na faculdade e em grande parte por isso desde o 5.º ano do curso comecei a trabalhar nas áreas da neurologia e da farmacologia clínica. Posteriormente estive em Toulouse, num laboratório de farmacologia clínica afeto a um centro de investigação, onde continuei a trabalhar na área da doença de Parkinson e em ensaios clínicos para o desenvolvimento de novos medicamentos. Voltei a Portugal, fiz o meu doutoramento, e continuei a dar aulas na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, nas referidas áreas. Há uns anos assumi a direção do Laboratório de Farmacologia Clínica da Faculdade de Medicina e desde há um ano sou diretor de uma nova estrutura que é o Centro de Investigação Clínica do Centro Académico de Medicina de Lisboa. Este centro académico resulta da fusão de três instituições: o Centro Hospitalar Lisboa-Norte, a Faculdade de Medicina de Lisboa e o Instituto de Medicina Molecular. Para além disso sou neurologista no serviço de neurologia do Hospital de Santa Maria, dedicando-me preferencialmente às doenças onde tenho atividade de investigação, as chamadas doenças do movimento. A criação do Campus Neurológico Sénior é assim um desafio em acumulação com as outras atividades que exerço e acho que vai-me permitir desenvolver quer atividades clínicas, quer de investigação, em áreas que não desenvolvo nas outras estruturas em que trabalho porque têm competências diferentes, vocações diferentes, formas de funcionar diferentes. Aqui tenho o privilégio de ter a autonomia de decidir o que deve ser feito.

(...) não há muitas cidades [como Torres Vedras] com esta dimensão na área da saúde(...)

Em que moldes funciona então o Campus Neurológico Sénior?

Por um lado destina-se a prestar cuidados de saúde de ambulatório, a doentes que nos visitam para uma consulta, sendo que os utentes têm consultas não só na área da neurologia mas também de especialidades associadas e têm o privilégio de serem recebidas por profissionais com conhecimentos específicos na sua doença.

Depois tem uma componente de reabilitação muito importante, seja física ou cognitiva.

Para além disso tem duas unidades de internamento, uma a que chamamos de residencial que no fundo é para internamento de doentes mais incapacitados, que requerem um maior apoio do ponto de vista de vigilância médica, e depois uma unidade que nós chamamos de residência sénior que são apartamentos para pessoas que a partir de uma determinada idade pretendem estar num ambiente protegido, independentemente da sua autonomia, e em que se houver alguma ocorrência alguém os irá ajudar. Esta residência foge um bocadinho ao conceito clássico de residências seniores porque também permite internamentos de curta duração para a realização de planos de recuperação. Pretendeu-se criar um local agradável cujo ambiente não seja imediatamente associado a uma unidade hospitalar ou a um local ligado a doença ou a incapacidade. Pretende-se que as pessoas possam neste alojamento protegido usufruir de cuidados clínicos diferenciados em áreas onde o número de profissionais de saúde com conhecimento específico é ainda pequeno.

Em termos de investigação há duas grandes áreas. Uma é a área a que me dedico, dos ensaios clínicos, que é onde se testa o benefício e o risco de novos medicamentos. Pretendo que sejamos parceiros de ensaios clínicos que serão conduzidos em vários centros do mundo. Outro aspeto é fazer investigação na área da reabilitação, que é aquilo a que em ciência chamamos uma “área órfã”, porque não envolve a indústria farmacêutica, e hoje sabemos que os tratamentos que não passam por medicamentos, como a fisioterapia, podem ser tão ou mais eficazes do que as intervenções farmacológicas.

 

A vossa atividade abrange as famílias dos doentes?

Sim, porque as doenças não afetam apenas os doentes. O cuidador, o conjugue ou o familiar, pode também ser afetado pela doença. E há situações de exaustão dos cuidadores. A nossa estrutura pode permitir uma espécie de férias para o cuidador ao permitir o internamento do doente por períodos curtos. E o benefício para o cuidador pode ser algo tão básico como dormir. Há também a possibilidade do conjugue ficar como acompanhante. E há também consultas para o cuidador aprender sobre e a lidar com a doença. Obviamente que as associações de doentes podem fazer esse papel, mas nós não temos ainda enraizada essa tradição de associativismo. É algo que é muito difícil de ser implementado em outras estruturas de saúde, já que é considerado quase uma extravagância.

 

Quantos funcionários trabalham no Campus?

Será um número crescente. Numa fase inicial temos cerca de 50 funcionários e conto que tenha num prazo curto 20 a 30 médicos a prestar cuidados de saúde aqui. 

 (...) Diria que na Europa existem menos do que os dedos de uma mão de estruturas com esta vocação [como o Campus Neurológico Sénior] (...)

Que expetativas tem em relação ao funcionamento do Campus?

As nossas expetativas são altas, mas realistas. Serão os próximos tempos a confirmar se o que pensámos faz sentido. Sabemos que é uma estrutura pioneira em Portugal e que cobre algo que os outros não cobrem. Há a vantagem de quem vem trabalhar para aqui ter experiência clínica, do “terreno”, há muito tempo. Mas obviamente temos de ser humildes e perceber que estamos a começar de novo e temos de convencer os nossos utentes de que o que achamos que é de qualidade de facto é. Terá que ser um processo de crescimento lento e sólido, mas queremos primar pela excelência.

Por outro lado, o nosso intuito não é prestar um serviço apenas à população portuguesa, porque mesmo quando olhamos para o contexto europeu existem poucas estruturas com estas valências específicas. Diria que na Europa existem menos do que os dedos de uma mão de estruturas com esta vocação e portanto queremos posicionarmo-nos para atrair não apenas doentes nacionais, mas doentes que nos possam visitar de outros países europeus, e até de outros continentes, como do norte de África ou do Médio Oriente.

 

E porquê Torres Vedras para a localização deste equipamento?

Quando resolvemos construir este campus a opção por Torres Vedras não era única, havia outras opções, eram opções que andavam em Lisboa ou à volta de Lisboa. A cidade de Torres Vedras e este local específico acabou por ser o escolhido porque tinha um conjunto de condições que achávamos as mais adequadas, sendo que não estando no centro de Lisboa está a 20 minutos do aeroporto. E obviamente ser de Torres Vedras e conhecer o local e as pessoas fez-nos achar que era uma mais-valia. Em igualdade de circunstâncias era estranho não escolher o local onde nascemos e onde as coisas nos dizem mais.

 

Até se diz que Torres Vedras é uma espécie de “cidade da saúde”…

De facto Torres neste momento é uma cidade privilegiada a esse nível, não há muitas cidades com esta dimensão em estruturas de saúde, é de facto notável, é um caso que deveria ser estudado. Nós somos parceiros complementares porque o que vamos oferecer não se sobrepõe a nada do que já existe. Acho que essas condições têm a ver com a proximidade a Lisboa e com o facto de ser uma zona de algum desafogo económico relativamente a outras zonas do país e por isso os cidadãos daqui têm uma capacidade de escolha que em outras zonas não existe.

 

Esta projeto é de caráter familiar?

Sim, é um projeto que nasceu no seio da minha família há sete anos. Eu trabalho na área da saúde desde sempre, o meu irmão trabalha na área da engenharia civil desde sempre, e havia um desejo familiar de que eu e ele trabalhássemos em algo que nos aproximasse. Houve a hipótese de também avançar em parceria com outras instituições e algumas parcerias vão acontecer na mesma, sendo que uma dessas é com o Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica. Obviamente não estamos fechados a fazer parcerias ou colaborações com subsistemas que já existem e com outros parceiros na área da saúde. Neste momento estão em discussão possíveis parcerias com estruturas que já prestam cuidados de saúde na cidade de Torres Vedras, porque no fundo não somos nem uma unidade hospitalar nem o clássico lar, e por isso sempre que os doentes apresentarem um agravamento do seu estado clínico serão transferidos para uma unidade hospitalar.

 

Encontrou muitos entraves para a concretização deste projeto?

Bom, a esse nível tenho de referir que se houve instituição que desde o princípio teve um comportamento muito positivo foi a Câmara Municipal de Torres Vedras, nomeadamente o senhor presidente da Câmara. Se houve alguém que sempre nos recebeu de forma muito positiva e construtiva foi o senhor presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras. Porque de facto tive muitas outras reuniões de onde saí pouco animado. É um facto perturbador constatarmos haver bastantes entraves em muitas das instâncias de avaliação dos projetos. Mas o que é mais assustador é não haver um controlo dos tempos de aprovação. E houve respostas nada tranquilizadoras como o “vamos ver”... Confrontamo-nos com “pequenos poderes” que podem permitir que um projeto vá para a frente ou não. Deu para perceber o porquê de muitas entidades externas que querem investir no país, depois de se confrontarem com duas ou três interações deste tipo, desistirem dos seus planos. Pessoas de competência questionável podem ter o poder de bloquear investimentos que trazem muito dinheiro e emprego ao país. Muitas vezes porque acham que responder em quinze dias é o mesmo que responder num ano. Um investidor externo não teria a paciência que tivemos para concretizar este projeto. 

 

Tem previsto algum tipo de apoios de âmbito social na atividade do campus?

Isso é um aspeto importante. Basicamente o que nós planeamos fazer é a dois níveis. Um é fazer parcerias com associações das nossas doenças-alvo para que os sócios dessas associações possam ter benefício dessa ligação, o que nós valorizamos. Isso é algo que está previsto acontecer nomeadamente com a associação de doentes com doença de Parkinson. O segundo aspeto tem a ver com a formação dos profissionais de saúde e nesse âmbito estamos a pensar de forma graciosa desenvolver programas de formação para que possam aprender connosco, até porque temos consciência que devido às alterações demográficas o número de doentes com doença de Alzheimer e de Parkinson irá aumentar.

 

Acha que existe efetivamente um aumento de doenças do foro neurológico?

Felizmente nos últimos anos os cuidados de saúde em Portugal melhoraram imenso e isso significa que existem muitos mais neurologistas e consultas de neurologia acessíveis ao cidadão comum. Obviamente que existindo mais consultas de especialidade há muitos mais diagnósticos. Antigamente as pessoas tinham sintomas de doenças neurológicas, mas não chegavam a ter um diagnóstico efetivo. Em termos das doenças neurológicas há algumas que estão a diminuir. Hoje temos menos acidentes vasculares cerebrais porque alguns dos fatores de risco estão a diminuir, as pessoas controlam mais a tensão arterial, consomem menos sal, tratam melhor a diabetes... Por outro lado, há mais de outras doenças, como o Alzheimer e o Parkinson devido ao  que mencionei anteriormente.

(...) neste momento as mudanças estão a ser feitas de forma brusca e não planeada [na área da saúde](...)

Como vê a restruturação dos cuidados de saúde que está a acontecer na região e no país?

A minha opinião é muito simples. Obviamente que ao longo dos anos foram se cometendo excessos. Um exemplo clássico tem a ver com os transportes. Durante anos muita gente veio aos hospitais de ambulância quer estivesse incapacitado ou não. Isto é apenas um exemplo de que todos nós como intervenientes nos serviços de saúde não tivemos uma atitude contida. O problema é que ao longo dos anos devia-se ter feito o trabalho de casa, nós, profissionais de saúde, progressivamente devíamos ter reestruturado a nossa prática e reduzido os custos. E neste momento as mudanças estão a ser feitas de forma brusca e não planeada. E, portanto, são decisões cegas que afetam igualmente os trabalhadores competentes e os menos competentes. E por isso hoje a maior parte dos profissionais de saúde estão desmotivados e como não somos um país organizado, dependemos muito das pessoas estarem motivadas. Porque num país onde as pessoas não estão motivadas para fazer o “bocadinho mais”, quando este não é feito, é o caos. E o que se está a viver neste momento é uma fase de alguma desregulação. E quem é que sofre? Os doentes. Obviamente entre ser médico e doente a parte mais frágil está nos doentes. E nós, médicos, perdemos o sentido crítico por estarmos desmotivados e acabamos por ter atos na nossa rotina diária de que não nos devíamos orgulhar. Para nós é apenas um desconforto quando chegamos a casa ao final do dia, mas para os doentes é gravíssimo. Não há alternativa a fazermos restruturações, o único problema é as estarmos a fazer num formato que é desadequado e abrupto. E no serviço público em Portugal há muita gente competente, que “veste a camisola” e “dá o litro”, e estão a apanhar da mesma forma e proporção que os incompetentes  e aqueles que não têm o mesmo nível de esforço.  O fator de mérito não é levado em linha de conta e devia ser…

Última atualização: 13.08.2019 - 12:21 horas
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