Torres Vedras

Filomena Moura Guedes

01.01.2014

Filomena Moura Guedes foi uma das personalidades que recebeu a medalha de mérito municipal de grau ouro na recente Sessão Solene do Feriado Municipal. Esposa do ex-deputado e governador civil já falecido, o torriense Afonso Moura Guedes, vive há várias décadas na região embora seja oriunda do distrito de Aveiro. O seu grande legado em Torres Vedras prende-se com a criação da APECI (Associação para a Educação de Crianças Inadaptadas de Torres Vedras), uma instituição bastante acarinhada pela comunidade local, à qual continua a presidir, com 83 anos.

Filomena Moura Guedes abordou a formação e o desenvolvimento desta instituição, o momento atual da mesma, para além de outros temas como o seu percurso pessoal e profissional, a evolução da imagem da pessoa com deficiência mental, da sociedade portuguesa e do concelho, e os "entusiasmantes tempos" do 25 de abril...

Começava por lhe perguntar como foi o seu percurso de vida pessoal e profissional?

Sou de Sangalhos, concelho de Anadia. Estudei no liceu em Aveiro, depois fui para Coimbra fazer o curso de Direito e posteriormente comecei a minha vida profissional, tendo passado por vários locais do país. Estive em Ribeira de Pena, em Trás-os-Montes, onde fui notária e conservadora do Registo Civil, depois em Monção, onde fui conservadora do Registo Predial. Entretanto, já na faculdade, tinha começado a namorar com o meu marido, Afonso Moura Guedes, e por isso vim para a zona Oeste, já que ele era de Torres Vedras e queria iniciar aqui a sua vida profissional até porque o seu pai já tinha nome na praça também como advogado. Assim, acabei por conseguir transferência para a Lourinhã, onde fui conservadora do Registo Predial e notária, tendo vivido aí durante treze anos. Mais tarde pedi transferência para Torres Vedras onde passei a viver, também durante treze anos. Devido à carreira política do meu marido viria a trabalhar em Lisboa, no 22.º cartório, onde acabei a minha carreira profissional. Vivi lá 10 anos apesar de passar os fins de semana em Torres Vedras.

Desde nova, esteve também ligada a movimentos católicos...

Sim, quase desde sempre, estive ligada à juventude escolar católica, depois à juventude universitária católica, tendo desempenhado cargos dirigentes, e também a outros movimentos sociais e comunitários.

Como surgiu a ideia de criar a APECI?

Isso tem a ver com o facto de ter uma filha com trissomia 21. Quando ela nasceu não havia nada ao nível de apoio a crianças com deficiência mental. Por isso estive na fundação da Associação de Pais e Amigos de Crianças Diminuídas Mentais, que foi a primeira instituição em Portugal de apoio a crianças com deficiência mental, sediada em lisboa. Quando se deu o 25 de abril, altura em que houve uma grande abertura para o associativismo, tive a ideia de criar uma associação de apoio a crianças com deficiência mental em Torres Vedras e por essa razão escrevi um artigo no Badaladas, interpelando pais que estivessem interessados em criá-la.
Houve uma reunião na antiga escola técnica na qual apareceram logo 30 pais, e com essas pessoas fizemos a escritura da APECI, constituímos a associação, e tivemos desde logo muito boa aceitação da comunidade, para o que muito contribuiu o jornal Badaladas, aliás, a nossa primeira sede até foi nas instalações desse jornal. Todas as forças vivas nos apoiaram, as escolas, as instituições de saúde, a Igreja, a Câmara. Era um tempo diferente, sem formalidades nenhumas, lembro-me de ter entrado pelo Ministério da Educação com a escritura na mão, sem ninguém me perguntar nada, e o protocolo foi assinado num ápice. Era um tempo encantador...

Depois, iniciámos a nossa atividade numa vivenda na zona do Treze, com 25 crianças, como escola de ensino especial. Só depois fomos registados como instituição particular de solidariedade social, após termos entrado em contacto com a Segurança Social. Era tudo menos burocratizado, era uma altura de grande abertura, aquela a seguir ao 25 de abril, foi um tempo muito entusiasmante e interessante. Uns anos depois, a Segurança Social construiu-nos o nosso atual edifício-sede, também através do PIDDAC e da ajuda da Câmara que nos deu o terreno. Entretanto fizemos um protocolo com a Segurança Social para termos também um centro de apoio ocupacional.

Começamos a fazer integração dos meninos nas empresas muito cedo, ainda sem termos formação profissional. Só mais recentemente apareceram os programas europeus de formação profissional. Tivemos então a doação de uma quinta perto de Runa, com 3ha, do senhor Fernando Leal, e começamos lá a funcionar com um pavilhão pré-fabricado. Posteriormente construímos o edifício onde está o nosso Centro de Formação Profissional, tudo à nossa custa.

Em Runa, temos neste momento cerca de 60 formandos, em hotelaria, agricultura, jardinagem, pecuária, e também em formação de auxiliares familiares e rececionistas. Para além disso, construímos duas moradias residenciais, ainda pelo PIDDAC, mas apenas comparticipadas a 60%. No nosso edifício-sede temos atualmente o Centro de Apoio Ocupacional, com 81 utentes com mais de 16 anos com deficiência profunda. Até há pouco tempo eram 75, embora a Segurança Social apenas financiasse 57, o que implicava muito esforço financeiro. Com a revisão do acordo com a Segurança Social conseguimos colocar mais meninos que estavam em lista de espera e a lista de espera é grande...

Também no nosso edifício-sede temos a intervenção precoce, com 60 meninos dos 0 aos 6 anos, e na área educativa, para utentes dos 6 aos 18 anos, apenas 5, porque a política do ministério é colocar esses meninos nas escolas regulares. A partir daqui funciona também o Centro de Recursos para a Inclusão, que se constitui precisamente como uma equipa que apoia essas situações, no nosso caso, mais de 200 alunos.


O desenvolvimento da APECI tem sido sempre sadio...

O desenvolvimento da instituição tem corrido bem, com o apoio da comunidade, as pessoas recebem-nos bem, compreendem-nos, acham que é um trabalho útil, e temos uma gestão bastante transparente e rigorosa. Tivemos sempre bastante "juízo na cabeça", nunca demos passos maiores que a perna. Temos tido um percurso bastante consistente, apelando muito à solidariedade da comunidade, e temos sido correspondidos. Sentimos que há um carinho especial pela APECI. Temos protocolos com o Estado, mas que não chegam para pagar todas as despesas e como somos instituição privada de solidariedade social cabe-nos dinamizar a comunidade para ser solidária, o que temos conseguido.

Apesar dos tempos difíceis que se vivem, temos tido bastante êxito na colocação de alunos nossos nas empresas. Quando são integrados são muito bons trabalhadores, as empresas gostam deles, fazem muito bom trabalho, há até empresas que nos pedem mais. Dizem que eles dão muito bom ambiente, porque no contacto com esses meninos as pessoas humanizam-se, aquilo que de melhor têm vem ao de cima...

De resto, temos uma grande equipa de colaboradores, que é o nosso património mais valioso, que para além da sua competência técnica constituem um corpo, funcionam como uma equipa e "vestem a camisola". São 104 colaboradores. A APECI deve muito à comunidade mas também aos seus colaboradores e aos voluntários que connosco colaboram. E temos um grande orgulho de nunca termos tido ordenados em atraso.

Estou agradecida por estar numa terra destas com valores humanos tão bons

A Câmara Municipal tem também apoiado a instituição?

Sim, tem-nos ajudado bastante, não tanto com dinheiro, mas mais ao nível logístico, com a construção de infra--estruturas ou a cedência de transportes. Aliás, desde a primeira hora sempre tivemos as melhores relações com todas as câmaras.

Estou agradecida por estar numa terra destas com valores humanos tão bons...


Existe neste momento algum constrangimento em especial na vossa atividade?

Um bloqueamento que temos é o facto de o nosso lar residencial ter apenas capacidade para 27 utentes. É um problema grave porque o lar destina-se aos utentes que não têm pais ou têm pais doentes... É por isso que estamos preocupadíssimos em alargar a nossa capacidade de acolhimento a esse nível. Atualmente estamos a desenvolver a campanha "Um Euro por um teto" para construir mais duas unidades residenciais. O nosso projeto é para 20 utentes mas já ficaríamos contentes se conseguíssemos financiamento para mais dez nessa valência. As nossas campanhas são agora destinadas a esse projeto. Este tipo de residências é, aliás, uma grande carência que se vai verificando em todo o país. E por termos essa valência recebemos pedidos desde Trás-os-Montes até ao Algarve, até porque é uma resposta um pouco cara.


Sentimos que há um carinho especial pela APECI


Na sua opinião a imagem das pessoas com deficiência mental é neste momento já bastante mais positiva do que na altura em que fundou a APECI?

Sem dúvida. Ainda existe um longo caminho a percorrer, mas a diferença em relação aos tempos de fundação da APECI é abissal. O grande papel a esse nível tem sido desempenhado pelas instituições que acolhem crianças e jovens deficientes mentais. De facto, têm feito muita socialização porque antigamente os deficientes mentais eram escondidos em casa. Nos princípios da nossa atividade abrangíamos cinco concelhos, que eram os de Torres Vedras, Lourinhã, Cadaval, Mafra e Alenquer. Nessa altura acolhíamos 30 crianças que vinham todos os dias de Mafra, e nós achámos que tínhamos de mobilizar as pessoas de Mafra para fundarem lá uma instituição de apoio a crianças deficientes mentais. Fomos falar com o senhor presidente da Câmara e ele disse-nos que não tinha conhecimento de deficientes mentais no seu concelho. Foi então que revelámos os 30 meninos de Mafra que tínhamos connosco e ele ficou surpreso. Deu depois um apoio enorme à criação da APERCIM. Isto para mostrar como esta realidade era desconhecida das pessoas. De resto, também ajudámos à dinamização da ADAPECIL, na Lourinhã, porque tínhamos bastantes crianças de lá. Neste momento ainda temos meninos do Sobral de Monte Agraço e do Cadaval e também dos outros concelhos na área da formação profissional.

No início da entrevista falava com entusiasmo dos tempos do 25 de abril. Como viveu essa época?

Bom, eu e o meu marido não éramos da oposição radical, estivemos na fundação da SEDES, que foi uma "pedrada no charco", foi uma oposição tolerada pelo regime na altura da "Primavera Marcelista". Em Torres havia um núcleo da SEDES, fizemos cá imensos colóquios, lembro--me inclusivamente da PIDE a tirar fotografias nessas ações. Da SEDES saíram políticos que depois do 25 de abril viriam a ter papéis fundamentais.

O meu marido esteve na fundação do PSD, foi deputado na Assembleia Constituinte, numa altura em que os deputados não ganhavam nada. Eram tempos de idealismo, também de grande felicidade... Era um tempo de expetativas, em que parecia que estava tudo por fazer. Antes da Democracia se institucionalizar era a imaginação no poder... Posteriormente foi deputado na Assembleia da República e depois foi governador civil. Eu fui acompanhando o meu marido, mas nunca tive muita vocação para a política ativa.



Como tem visto a evolução da sociedade portuguesa ao longo destes anos?

Bom, não podemos deixar de pensar que estamos num período negro. Além da crise económica, há obviamente uma crise social. Naqueles tempos do 25 de abril havia idealismo e a sociedade entretanto materializou-se, entrou a lógica do dinheiro, que corrompe, e do consumismo. As coisas alteraram-se. As crianças, por exemplo, hoje querem é objetos, acham que a felicidade está nos objetos. Eu sou do tempo dos ideais, de uma altura em que havia muito porque lutar. Na verdade, não sei se hoje há menos ideais, acho que na Humanidade há sempre causas pelas quais lutar. Na altura tínhamos o ideal da liberdade, mas hoje existem outros, como os ecológicos, os relacionados com a igualdade, temos um mundo cada vez mais desigual, os próprios ideais feministas ainda não acabaram...Talvez com a crise o consumismo diminua um bocadinho, também porque era um exagero, as pessoas viviam para ter objetos, objetos, como se isso desse a felicidade... O que dá a felicidade são as relações... Por outro lado, há também uma crise na educação, os pais acham que a escola é que tem de educar os filhos, demitem-se dessa responsabilidade... Vivemos num mundo muito complicado, o mundo em que vivi era mais fácil, o mundo complexificou-se, havia mais tempo, a vida acelerou imenso...

E como tem visto a evolução de Torres Vedras?

Teve uma evolução enormíssima com o 25 de abril. Antes disso Torres Vedras era muito fechada, muito estratificada em classes. Até as coletividades eram estratificadas. Havia o Operário que era para os operários, o Clube Artístico e Comercial, que era para os comerciantes, a Tuna, o casino, etc. Era uma coisa que me chocava muito porque sou de uma região onde era tudo muito democrático, as pessoas de uma geração para a outra mudavam de classe social porque eram muito empreendedoras. Aqui lembro-me que as senhoras não iam aos cafés. Até os filhos dos grandes proprietários não iam estudar porque os pais achavam que não era necessário. Era tudo muito fechado. E Torres Vedras era uma região rica, mais do que a minha. As associações aqui apareceram em força depois do 25 de abril. O 25 de abril "abriu" muito Torres Vedras, deixou aqui uma grande pegada. De resto, Torres tem evoluído muito, hoje é uma cidade onde é agradável viver e com uma interessante oferta cultural.

Última atualização: 21.05.2015 - 11:19 horas
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